terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Olá!
ATENÇÃO!
ESTE É O 1º CAPITULO COMPLETO DO SANGUE FRESCO!
É MUITO GRANDE!
1
Esperava o vampiro há anos quando finalmente entrou no bar.
Desde que os vampiros tinham saído do caixão dois anos
antes (como se costumava dizer com escárnio), esperara que um
deles visitasse Bon Temps. Tínhamos todas as outras minorias na nossa
pequena cidade. Porque não a mais recente? Porque não os não‑mortos
legalmente reconhecidos? Mas o Norte rural do Louisiana parecia não
ser muito apelativo para os vampiros. Por outro lado, Nova Orleães era
um verdadeiro centro de actividade vampírica (ou não tivesse Anne
Rice escrito sobre o assunto).
A viagem de carro entre Bon Temps e Nova Orleães não era assim
tão longa e todos os clientes do bar diziam que, atirando uma pedra na
esquina de uma rua, seria quase inevitável acertar em alguém. Apesar
de isso não ser aconselhável.
Mas eu continuava à espera do meu próprio vampiro.
Pode dizer‑se que não saio muito. E não é por não ser bonita. Porque
sou. Sou loura, tenho olhos azuis e vinte e cinco anos, as minhas
pernas são fortes e o meu peito é considerável, com uma cinturinha de
vespa. Fico bem na farda de Verão que Sam escolheu para as empregadas:
calções pretos, camisola de manga curta branca, meias brancas,
ténis Nike pretos.
Mas tenho uma deficiência. É assim que gosto de a referir.
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Os clientes dizem que sou doida apenas.
Seja como for, o resultado é que saía pouco. Por isso, as pequenas
coisas positivas na minha vida têm um valor multiplicado.
E ele, o vampiro, sentou‑se numa das minhas mesas.
Percebi imediatamente o que era. Espantou‑me que mais ninguém
se tivesse voltado para o olhar fixamente. Não conseguiam perceber!
Mas, para mim, a pele dele parecia ter um brilho ténue e foi
assim que soube.
Poderia ter dançado de alegria e improvisei mesmo uma pequena
coreografia junto ao balcão. Sam Merlotte, o patrão, ergueu o olhar da
bebida que misturava e esboçou um leve sorriso. Peguei no tabuleiro
e no bloco de notas e aproximei‑me da mesa do vampiro. Esperei que
o baton não estivesse borrado e que o rabo‑de‑cavalo continuasse impecável.
Sou um pouco ansiosa e conseguia sentir um sorriso puxando‑me
os cantos da boca para cima.
Parecia imerso em pensamentos e pude mirá‑lo de alto a baixo
antes que voltasse os olhos para mim. Não chegaria ao metro e
oitenta. Tinha cabelo castanho espesso penteado para trás e roçando‑lhe
o colarinho. As patilhas pareciam estranhamente antiquadas.
Era pálido, obviamente. Afinal, estava morto, acreditando nas velhas
histórias. A teoria politicamente correcta, que os próprios vampiros
aprovavam de forma pública, dizia que aquele tipo fora vítima de um
vírus que o deixara aparentemente morto durante um par de dias e,
a partir daí, alérgico à luz do sol, à prata e ao alho. Os pormenores
dependiam do jornal que se lesse. Estavam todos cheios de coisas
sobre vampiros.
Os seus lábios eram encantadores e bem definidos e tinha sobrancelhas
escuras arqueadas. O nariz projectava‑se do arco das
sobrancelhas, como o nariz de um príncipe num mosaico bizantino.
Quando finalmente ergueu os olhos, vi que eram ainda mais
escuros do que o cabelo e que o branco em redor era incrivelmente
límpido.
— Que deseja beber? — perguntei, quase demasiado feliz para
articular as palavras.
O vampiro ergueu as sobrancelhas.
— Têm aquele sangue sintético engarrafado? — perguntou.
—
Não. Lamento muito. O Sam encomendou algum. Deve chegar
na semana que vem.
— Então traga‑me vinho tinto, por favor — disse com uma voz
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calma e cristalina, como um regato correndo sobre seixos. Ri‑me alto.
Era demasiado perfeito.
— Não ligue à Sookie, senhor. É maluca — disse uma voz familiar,
vinda do compartimento encostado à parede. Toda a minha felicidade
se desvaneceu, apesar de ainda conseguir sentir o sorriso nos lábios. O
vampiro fitou‑me, vendo a alegria abandonar‑me a expressão.
— Trago já o seu vinho — disse, afastando‑me, sem sequer olhar
a cara arrogante de Mack Rattray. Estava lá quase todas as noites com
a mulher, Denise. Chamava‑lhes Senhor e Senhora Ratazana. Desde
que se mudaram para uma caravana alugada em Four Tracks Corner,
esforçavam‑se por me fazer a vida miserável. Esperava que partissem
de Bon Temps tão subitamente como haviam chegado.
Quando entraram no Merlotte’s pela primeira vez, cometi a indiscrição
de ouvir os seus pensamentos (sim, eu sei que não é uma
atitude muito elevada). Mas aborreço‑me como toda a gente e, apesar
de passar a maior parte do meu tempo a bloquear os pensamentos
alheios que tentam infiltrar‑se no meu cérebro, por vezes não consigo
resistir. E foi assim que descobri algumas coisas sobre os Rattray que
talvez mais ninguém soubesse. Por um lado, sabia que tinham estado
presos, apesar de não saber porquê. Por outro, lera os pensamentos
enojantes de Mack Rattray sobre esta vossa amiga. E, a seguir, descobri
nos pensamentos de Denise que abandonara um bebé que tivera dois
anos antes, um bebé que não era de Mack.
Além disto tudo, não davam gorjetas.
Sam encheu um copo com o vinho tinto da casa, olhando a mesa
do vampiro enquanto o colocava no meu tabuleiro.
Quando voltou a olhar para mim, pude ver que também sabia
aquilo que era o nosso novo cliente. Os olhos de Sam são tão azuis
como os de Paul Newman, em contraste com os meus, de um azul mais
acinzentado. Sam também é louro, mas tem o cabelo mais fino e a cor
aproxima‑se de um amarelo‑torrado. Está sempre levemente queimado
pelo sol e, apesar de parecer magro quando vestido, vi‑o descarregar
carrinhas sem camisa e a sua musculatura do tronco é considerável.
Nunca ouço os seus pensamentos. É o patrão. Tive de me despedir
de empregos por descobrir coisas sobre os patrões que preferia não ter
sabido.
Sam não fez qualquer comentário e limitou‑se a passar‑me o vinho.
Olhei o copo para me certificar de que estava perfeitamente limpo
e voltei à mesa do vampiro.
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— Aqui tem — disse, com cerimónia, colocando o copo com cuidado
na mesa à sua frente. Voltou a olhar‑me e aproveitei a oportunidade
para lhe apreciar os belos olhos enquanto podia. — Bom proveito
— disse‑lhe, orgulhosa.
Atrás de mim, Mack Rattray berrou:
— Ei, Sookie! Precisamos de outro jarro de cerveja!
Suspirei e voltei‑me para recolher o jarro vazio da mesa das Ratazanas.
Reparei que Denise estava na sua melhor forma. Vestia um top revelador
e calções curtos, com o emaranhado de cabelo castanho cobrindo‑lhe
a cabeça com madeixas atraentes. Não era realmente bonita, mas
era tão exuberante e confiante que se levava algum tempo a percebê‑lo.
Um pouco mais tarde, para meu desconsolo, vi que os Rattray se
tinham mudado para a mesa do vampiro. Falavam com ele. Não o via
responder muito, mas também não se ia embora.
— Olha para aquilo! — disse a Arlene, outra das empregadas,
sem esconder o desagrado. Arlene é uma ruiva sardenta, dez anos mais
velha do que eu e veterana de quatro casamentos. Tem dois filhos e,
ocasionalmente, acho que me considera a sua terceira criança.
— Tipo novo, hã? — disse, com interesse limitado. Arlene namorava
com Rene Lenier e, apesar de eu não conseguir perceber a atracção,
parecia satisfeita. Penso que Rene foi o seu segundo marido.
— É um vampiro — disse, forçada a partilhar o meu encanto com
alguém.
— A sério? Aqui? Vejam só… — comentou, sorrindo um pouco
para mostrar que percebia a minha satisfação. — Não pode ser muito
esperto para estar com as Ratazanas. Mas é verdade que Denise lhe está
a montar um espectáculo e tanto.
Só percebi quando Arlene o referiu. É muito melhor do que eu
a avaliar situações sexuais devido à sua grande experiência e à minha
falta dela.
O vampiro tinha fome. Sempre ouvira dizer que o sangue sintético
desenvolvido pelos japoneses conseguia assegurar a nutrição
dos vampiros mas sem satisfazer a fome e era por isso que existiam
«acidentes lamentáveis» de tempos a tempos. (Era esse o eufemismo
vampírico para a morte sangrenta de um humano). E ali estava Denise
Rattray, acariciando o pescoço, movendo a mão de um lado para o
outro… Que cabra.
Jason, o meu irmão, entrou no bar nesse momento e aproximou‑se
para me dar um abraço. Sabe que as mulheres apreciam um
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homem que é bondoso para a família e para os deficientes e abraçar‑me
proporciona‑lhe esse benefício duplo à reputação. Não que precise de
benefícios adicionais aos que possui limitando‑se a ser ele próprio. É
bonito. Também pode ser velhaco, mas a maioria das mulheres parece
perfeitamente disposta a ignorar esse pormenor.
— Olá, mana. Como está a avó?
— Está bem. Na mesma. Vem visitá‑la.
— Claro que sim. Quem está cá hoje?
— Vê por ti próprio. — Reparei que, quando Jason olhou em redor,
houve um erguer de mãos femininas até ao cabelo, até às blusas e
aos lábios.
— Ei. Está ali a DeeAnne. Está livre?
— Veio com um camionista de Hammond. Foi à casa de banho.
É melhor teres cuidado.
Jason sorriu‑me e maravilhei‑me por as outras mulheres não conseguirem
ver o egoísmo daquele sorriso. Até Arlene ajeitava a camisola
quando Jason entrava e, após quatro maridos, devia saber alguma coisa
sobre como avaliar homens. A outra empregada, Dawn, compôs o
cabelo e endireitou as costas para realçar as mamas. Jason limitou‑se
a acenar‑lhe amigavelmente. Ela fingiu um esgar de desdém. Estava
chateada com Jason mas, mesmo assim, queria que ele reparasse nela.
Fiquei muito ocupada. Todos vinham ao Merlotte’s no sábado à
noite durante algum tempo e acabei por perder de vista o meu vampiro.
Quando voltei a poder procurá‑lo, vi que conversava com Denise.
Mack olhava‑o com uma expressão de tamanha avidez que me deixou
preocupada.
Aproximei‑me da mesa, fitando Mack. Finalmente, baixei as defesas
e ouvi.
Mack e Denise tinham estado presos por drenar vampiros.
Profundamente angustiada, consegui, mesmo assim, levar um
jarro de cerveja e alguns copos até uma mesa rodeada por quatro clientes
ruidosos. Porque se dizia que o sangue dos vampiros conseguia aliviar
temporariamente os sintomas de doença e aumentar a potência
sexual, sendo uma espécie de combinação de Prednisona com Viagra,
existia um grande mercado negro para o sangue de vampiro genuíno
e não diluído. Em todos os mercados há fornecedores e acabara de
descobrir dois: o miserável casal Ratazana. Tinham capturado e drenado
vampiros, vendendo os pequenos frascos de sangue a preços que
chegavam aos duzentos dólares cada um. Há dois anos que era a droga
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mais apetecida. Alguns compradores enlouqueciam depois de beber
sangue puro de vampiro, mas isso não diminuía a procura.
Habitualmente, os vampiros drenados não sobreviviam durante
muito tempo. Os drenadores trespassavam‑nos com uma estaca ou
limitavam‑se a abandoná‑los em terreno aberto. Quando o sol nascia,
era o fim. Também havia relatos ocasionais de inversão dos papéis,
quando os vampiros conseguiam libertar‑se e deixavam para trás os
drenadores sem vida.
O meu vampiro levantava‑se e saía com as Ratazanas. Mack cruzou
o olhar com o meu e percebi que a minha expressão o deixava perturbado.
Voltou a cara, ignorando‑me como ignorava qualquer outra
pessoa.
Aquilo deixava‑me furiosa. Realmente furiosa.
Que deveria fazer? Enquanto tentava ultrapassar o turbilhão mental,
eles saíam pela porta. O vampiro acreditaria em mim se corresse
atrás deles e lhe contasse? Mais ninguém acreditava. Ou, se acreditassem,
iriam odiar‑me e recear‑me por ler os pensamentos escondidos
na cabeça das pessoas. Arlene implorara‑me para ler os pensamentos
do quarto marido quando ele veio buscá‑la numa noite por estar certa
de que ele pensava em abandoná‑la a ela e aos miúdos, mas não o fiz
porque queria manter a única amiga que me restava. Não conseguira
pedir‑mo directamente porque isso seria admitir que eu tinha este
dom, esta maldição. E as pessoas não eram capazes de o admitir. Precisavam
de acreditar que era maluca. E, por vezes, era‑o realmente.
Hesitei, confusa, assustada e furiosa até perceber que precisava de
agir. O olhar que Mack me lançou foi a última gota. Olhou‑me como se
fosse um risco insignificante.
Corri até ao balcão, aproximando‑me de Jason, ocupado a encantar
DeeAnne. A opinião generalizada dizia que não seria necessário
grande encantamento. O camionista de Hammond olhava com desagrado
do lado oposto.
— Jason — disse, urgentemente. Ele voltou‑se, lançando‑me um
olhar de aviso. — Ainda tens aquela corrente na carrinha?
— Não saio de casa sem ela — disse, languidamente, procurando
sinais de perigo na minha expressão. — Vais lutar com alguém, Sookie?
Sorri‑lhe, tão habituada a sorrisos falsos que a reacção me era
natural.
— Espero que não — disse, alegremente.
— Precisas de ajuda? — Afinal, era meu irmão.
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— Não, obrigada — disse‑lhe, tentando parecer convincente. E
fui ter com Arlene. — Olha, tenho de sair um pouco mais cedo. As
minhas mesas têm pouca gente. Podes substituir‑me? — Não me lembrava
de alguma vez ter pedido tal coisa a Arlene, apesar de lhe eu a ter
substítuido em muitas ocasiões. Também se ofereceu para me ajudar.
— Não é preciso — disse. — Se conseguir, ainda regresso. Se limpares
as minhas mesas, limpo‑te a caravana.
Arlene acenou avidamente com a cabeça, fazendo dançar a cabeleira
ruiva.
Apontei a porta dos funcionários e fiz os dedos caminhar, indicando
a Sam que me ia.
Ele acenou afirmativamente. Não parecia satisfeito.
E lá fui eu pela porta dos fundos, tentando silenciar os pés sobre
a gravilha. O parque de estacionamento dos funcionários ficava nas
traseiras do bar, acessível por uma porta que abria para o armazém. Estava
ocupado pelo carro do cozinheiro, pelo de Arlene, pelo de Dawn
e pelo meu. À minha direita, a leste, a carrinha de Sam estava parada à
frente da sua caravana.
Saí do parque coberto de gravilha e passei ao alcatrão do parque
de estacionamento dos clientes, que era maior, a oeste do bar. A floresta
rodeava a clareira ocupada pelo Merlotte’s e a gravilha cobria também
os limites do parque. Sam mantinha‑o bem iluminado e o brilho surreal
dos candeeiros altos tornava tudo estranho.
Vi o carro desportivo vermelho e amolgado do Senhor e da Senhora
Ratazana e percebi que estariam perto.
Finalmente, encontrei a carrinha de Jason. Era preta, decorada
com chamas azuis e rosa nos lados. Adorava dar nas vistas. Aproximei‑me
da traseira e vasculhei na caixa, procurando a corrente de aros
metálicos grossos que transportava consigo para a eventualidade de se
envolver numa rixa. Puxei‑a e transportei‑a contra o corpo para não
fazer barulho.
Pensei por um segundo. O único local vagamente sossegado para
onde as Ratazanas poderiam ter atraído o vampiro era a extremidade
do parque de estacionamento, onde a copa das árvores caía sobre os
carros. Avancei nessa direcção, tentando mover‑me com rapidez mas
em silêncio.
Ia parando pelo caminho, pondo‑me à escuta. Não tardei a ouvir
um gemido e vozes difusas. Serpenteei entre os carros e avistei‑os precisamente
onde esperara que estivessem. O vampiro estava deitado de
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costas no chão, com a face alterada pela agonia e o brilho de correntes
cruzando‑lhe os pulsos e prolongando‑se até aos tornozelos. Prata. Havia
já dois pequenos frascos de sangue no chão ao lado dos pés de Denise
e, enquanto eu observava, ajustou um novo tubo de ensaio à agulha.
O torniquete acima do cotovelo cravava‑se cruelmente no braço.
Estavam de costas voltadas para mim e o vampiro ainda não me
vira. Desembrulhei a corrente, deixando um metro solto. Quem atacaria
primeiro? Eram ambos pequenos e viciosos.
Recordei o olhar de desprezo de Mack e o facto de nunca me ter
deixado gorjeta. Seria ele o primeiro.
Nunca lutara com ninguém antes. De alguma forma, sentia‑me
ansiosa pela experiência.
Saí de trás de uma carrinha e lancei a corrente. Caiu sobre as costas
de Mack, ajoelhado ao lado da vítima. Gritou e ergueu‑se de um
salto. Depois de um olhar rápido, Denise dedicou‑se a aplicar o terceiro
tubo de ensaio. A mão de Mack desceu até à bota e voltou a subir
com um brilho repentino. Engoli em seco. Tinha uma faca.
— Ora bolas… — disse, sorrindo‑lhe.
— Sua cabra maluca! — berrou. Parecia ávido por usar a faca.
Estava demasiado concentrada para manter a barreira mental e não
consegui evitar uma visão clara do que Mack me queria fazer. Enfureceu‑me.
Lancei‑me sobre ele com toda a intenção de o ferir o mais
possível. Mas estava preparado e, enquanto eu fazia girar a corrente,
lançou‑se para a frente com a faca. Tentou cortar‑me o braço e falhou
por muito pouco. A corrente rodeou‑lhe o pescoço escanzelado. O
grito triunfal de Mack transformou‑se num gargarejo. Deixou cair a
faca e segurou os aros metálicos com ambas as mãos. Sem conseguir
respirar, deixou‑se cair de joelhos no pavimento, puxando‑me a corrente
das mãos.
Lá se ia a corrente de Jason. Baixei‑me e peguei na faca, segurando‑a
como se soubesse usá‑la. Denise avançava, parecendo uma
bruxa saloia, coberta pelas linhas e sombras lançadas pelas luzes de
segurança.
Parou quando viu que segurava a faca de Mack. Praguejou e disse
coisas terríveis. Esperei até se calar para dizer:
— Põe‑te a andar. Depressa.
O olhar de ódio quase abria buracos na minha pele. Tentou levar
os frascos de sangue mas disse‑lhe para os deixar. Limitou‑se a erguer
Mack. Este continuava a debater‑se para respirar e a segurar a corren17
te. Denise arrastou‑o até ao carro e enfiou‑o no banco do passageiro.
Tirando as chaves do bolso, sentou‑se ao volante.
Ouvindo o motor, percebi subitamente que as Ratazanas tinham
agora outra arma. Movendo‑me com rapidez inédita, corri até à cabeça
do vampiro e disse‑lhe:
— Empurra com os pés!
Segurei‑o por baixo dos braços e puxei com toda a minha força.
Ele percebeu e ajudou, movendo os pés como lhe dissera. Tínhamos
chegado à linha de árvores quando o carro vermelho se lançou ruidosamente
sobre nós. Denise não nos apanhou por pouco, forçada a mudar
a trajectória para evitar embater num pinheiro. Em seguida, ouvi o
som do motor poderoso do carro das Ratazanas a afastar‑se.
— Uau! — Tentei recuperar o fôlego e ajoelhei‑me ao lado do
vampiro porque as pernas não conseguiam suportar‑me. Inspirei profundamente
durante um minuto, procurando normalizar a respiração.
O vampiro moveu‑se um pouco e olhei‑o. Para meu horror, vi que se
erguia fumo dos pulsos, nos pontos tocados pela corrente. — Ó, pobre
coitado — disse, recriminando‑me por não cuidar imediatamente
dele. Ainda a tentar recuperar o fôlego, comecei a libertá‑lo do que parecia
ser uma longa e fina corrente de prata. — Coitadinho — murmurei,
não me apercebendo imediatamente do absurdo do comentário.
Tenho dedos ágeis e consegui libertar‑lhe rapidamente os pulsos. Pensei
em como as Ratazanas teriam conseguido distraí‑lo para o prender
com a corrente e dei comigo a corar enquanto o fazia.
O vampiro ergueu os braços até ao peito enquanto lhe libertava
as pernas. Os tornozelos estavam melhor porque os drenadores não se
tinham dado ao trabalho de lhe puxar as calças de ganga para cima,
não colocando a corrente sobre a pele nua.
— Lamento não ter chegado mais depressa — desculpei‑me. —
Vais sentir‑te melhor num minuto, não é? Queres que me vá embora?
— Não.
Aquilo fez‑me sentir muito bem até acrescentar:
— Podem regressar e ainda não consigo enfrentá‑los.
A sua voz calma parecia irregular, mas não posso dizer que ouvi
a respiração acelerada.
Esbocei‑lhe uma expressão azeda e, enquanto recuperava, tomei
precauções. Voltei‑lhe as costas, dando‑lhe privacidade. Sei como é desagradável
que nos observem fixamente enquanto sofremos. Sentei‑me
no alcatrão, vigiando o parque de estacionamento. Vários carros par18
tiram e outros chegaram, mas nenhum se aproximou de nós. Percebi
pela deslocação de ar atrás de mim que o vampiro se pusera de pé.
Não falou de imediato. Voltei a cabeça para a esquerda para
olhá‑lo. Estava mais próximo do que pensara. Os seus grandes olhos
escuros fixaram‑se nos meus. Os caninos estavam retraídos. Isso desiludiu‑me
um pouco.
— Obrigado — disse, friamente.
Não estava eufórico por ter sido salvo por uma mulher. Típico.
Porque estava a ser tão pouco delicado, achei que também podia
fazer alguma coisa rude e ouvi‑o, abrindo a mente por completo.
E… não ouvi nada.
— Oh… — exclamei, percebendo o choque na minha própria voz
e mal percebendo que falava em voz alta. — Não consigo ouvir‑te.
— Obrigado! — repetiu o vampiro, movendo os lábios de forma
exagerada.
— Não é isso… Consigo ouvir‑te falar, mas… — e, na minha excitação,
fiz algo que habitualmente nunca teria feito porque era demasiado
pessoal e carente, revelando a minha deficiência. Voltei‑me
para ele, pus as mãos de ambos os lados da sua cara pálida e olhei‑o
fixamente. Concentrei‑me com toda a minha força. Nada. Era como
ser forçada a ouvir constantemente num rádio estações que não podia
escolher e, de repente, sintonizar uma frequência vazia.
Era fantástico.
Os seus olhos abriam‑se mais e tornavam‑se mais escuros, apesar
de permanecer completamente imóvel.
— Desculpa — consegui dizer, embaraçada. Afastei as mãos e
recomecei a olhar o parque de estacionamento. Falei ao acaso sobre
Mack e Denise, pensando constantemente em como era maravilhoso
estar acompanhada por alguém que eu não conseguia ouvir a não ser
que ele falasse. Como era belo o seu silêncio.
— … achei melhor vir ver como estavas — concluí, sem ideia do
que dissera antes.
— Vieste salvar‑me. Foi corajoso — disse ele, com uma voz tão
sedutora que teria feito DeeAnne saltar para fora das suas cuecas de
nylon vermelho com um arrepio.
— Pára com isso — disse eu, com rispidez, como o barulho de
um terramoto.
Pareceu surpreso, por um segundo, antes de a sua expressão retornar
à lívida serenidade anterior.
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— Não tens medo de ficar sozinha com um vampiro faminto? —
perguntou, com um tom matreiro e perigoso na voz.
— Não.
— Achas que, por teres vindo salvar‑me, estás segura? Que mantenho
alguma sentimentalidade depois destes anos todos? É frequente
que os vampiros se voltem contra quem confia neles. Não temos os
mesmos valores dos humanos.
— Muitos humanos voltam‑se contra quem confia neles — referi.
Consigo ser pragmática. — Não sou completamente parva. — Estiquei
o braço e voltei a cara. Enquanto esperava que recuperasse, enrolei a
corrente das Ratazanas em redor do pescoço e dos braços.
Vi‑o estremecer.
— Mas tens uma artéria apetitosa na virilha — disse, depois de
fazer uma pausa para se recompor, com a voz tão sinuosa como uma
serpente num escorrega.
— Nada de palavreado ordinário — disse‑lhe. — Não admito isso.
Olhámo‑nos novamente em silêncio. Receei não voltar a vê‑lo.
Afinal, aquela primeira visita ao Merlotte’s não fora propriamente um
sucesso. Tentava absorver o máximo de pormenores. Recordaria durante
muito, muito tempo, aquele encontro. Era algo raro. Como um
tesouro. Queria voltar a tocar‑lhe a pele. Não conseguia recordar a sensação.
Mas isso seria ultrapassar uma fronteira de decência e poderia
ocasionar que ele fizesse algum disparate sedutor.
— Gostarias de beber o sangue que recolheram? — perguntou
ele, de forma inesperada. — Seria uma maneira de mostrar a minha
gratidão. — Apontou os frascos sobre o alcatrão. — Diz‑se que o nosso
sangue consegue melhorar a vida sexual e a saúde.
— Tenho uma saúde de ferro — disse‑lhe, com toda a honestidade.
— E não tenho propriamente uma vida sexual. Faz o que quiseres
com ele.
— Poderias vendê‑lo — sugeriu, mas achei que o fez apenas para
ver o que eu diria.
— Nem sequer lhe toco — disse, insultada.
— És diferente — disse. — Tu és o quê? — Pareceu conferir uma
lista mental de possibilidades pela forma como me olhava. Para minha
satisfação, não consegui ouvir nada.
— Sou a Sookie Stackhouse e sou uma empregada de bar — disse‑lhe.
— Como te chamas? — Achei que podia perguntar aquilo sem
ser atrevida.
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— Bill — respondeu.
Não consegui impedir uma gargalhada.
— O vampiro Bill! — disse. — Achei que pudesses ser Antoine,
Basil ou Langford! Bill! — Há muito tempo que não me ria assim. —
Até à vista, Bill. Tenho de voltar para o trabalho. — Conseguia sentir
o sorriso tenso regressar aos meus lábios quando pensei no Merlotte’s.
Pus a mão no ombro de Bill e ergui‑me. Senti que estava rígido e endireitei‑me
tão rapidamente que quase cambaleei. Examinei as meias
para me certificar de que estavam no sítio e procurei mazelas na farda
resultantes do confronto com as Ratazanas. Sacudi o pó do rabo e acenei
a Bill, iniciando a caminhada através do parque de estacionamento.
Fora uma noite estimulante, com muita coisa em que pensar. Reflectindo
no assunto, sentia que o sorriso que esboçava era perfeitamente
justificado.
Mas Jason ficaria muito irritado quando soubesse da corrente.
Nessa noite, depois do trabalho, regressei a casa, cerca de seis quilómetros
a sul do bar. Jason partira (e DeeAnne também) quando regressei
e isso fora outro elemento positivo. Passava a noite em revista quando
cheguei a casa da minha avó, onde vivia. Ficava imediatamente antes
do cemitério de Tall Pines que, por sua vez, se situava junto a uma
estrada secundária de dois sentidos. Foi o meu tetravô que construiu
a casa e gostava de privacidade. Para chegar lá, era necessário sair da
estrada e passar por uma zona arborizada até à clareira em que se situava
a casa.
Não é certamente nenhum monumento histórico, já que a maioria
das partes mais antigas foram arrancadas e substituídas ao longo
dos anos e, obviamente, tem electricidade, canalização e isolamento,
todas essas comodidades modernas. Mas mantém o telhado de zinco
que reflecte a luz nos dias soalheiros. Quando o telhado precisou de ser
substituído, quis instalar telhas comuns, mas a minha avó não concordou.
Apesar de ser eu a pagar, a casa é dela e o zinco manteve‑se.
Mais ou menos histórica, vivi nesta casa desde os meus sete anos
e visitava‑a com frequência antes disso porque gostava muito dela. Era
uma grande e velha casa de família, demasiado grande apenas para a
avó e para mim. Tinha uma fachada ampla, antecedida por um alpendre
coberto e estava pintada de branco, de acordo com as convicções
tradicionalistas da minha avó. Atravessei a grande sala de estar, decorada
com mobiliário velho remendado para servir as nossas necessida21
des, alcançando o corredor e percorrendo‑o até ao primeiro quarto à
esquerda, o maior de todos.
Adele Hale Stackhouse, a minha avó, estava recostada na sua
cama alta, com uma torre de almofadas por trás dos ombros magros.
Vestia uma camisa de noite de algodão com mangas longas, mesmo
com o ar quente daquela noite de Primavera. Tinha o candeeiro da
mesa‑de‑cabeceira ligado e um livro aberto no colo.
— Olá — disse‑lhe.
— Olá, querida.
A minha avó é muito pequena e muito velha, mas o cabelo continua
espesso e tão branco que quase adquire uma muito ligeira tonalidade
esverdeada. Prende‑o junto ao pescoço durante o dia, mas, à
noite, solta‑o ou faz uma trança. Olhei a capa do livro.
— Outra vez a ler a Danielle Steel?
— Esta mulher sabe como contar uma história. — Os maiores
prazeres na sua vida eram ler livros de Danielle Steele, ver as suas telenovelas
(a que chamava «histórias») e participar em reuniões da miríade
de clubes a que parecera ter pertencido durante toda a sua vida
adulta. Os seus preferidos eram os Descendentes dos Mortos Gloriosos
e a Sociedade de Jardinagem de Bon Temps.
— Consegues adivinhar o que aconteceu hoje? — perguntei.
— O que foi? Tens um encontro?
— Não — respondi, esforçando‑me por manter o sorriso. — Um
vampiro veio ao bar.
— Oh! Tinha caninos aguçados?
Vira‑os reflectindo a luz dos candeeiros do parque de estacionamento
enquanto as Ratazanas o drenavam, mas não era necessário
descrever‑lhos.
— Claro. Mas estavam retraídos.
— Um vampiro em Bon Temps. — Notava‑se que estava agradada.
— Mordeu alguém no bar?
— Claro que não, avó! Sentou‑se e bebeu um copo de vinho tinto.
Bom… pediu‑o, mas não bebeu. Acho que só queria companhia.
— Onde será que ele dorme?
— Duvido que o partilhasse com alguém.
— Não — disse, depois de pensar por um momento. — Não me
parece que partilhasse. Gostaste dele?
Ali estava uma pergunta complicada. Pensei antes de responder.
— Não sei. Mas era muito interessante — disse, com cautela.
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— Gostava muito de o conhecer. — Não me surpreendia que dissesse
isto porque gostava de novidades quase tanto como eu. Não pensava
como aqueles reaccionários que determinaram logo à partida que
os vampiros eram malditos. — Mas é melhor ir dormir. Estava à espera
que chegasses antes de apagar a luz.
Debrucei‑me para a beijar e disse:
— Boa noite.
Fechei a porta até meio quando saí e ouvi‑a desligar o candeeiro.
Tina, a minha gata, aproximou‑se do sítio onde deveria estar a dormir
e roçou‑se nas minhas pernas. Peguei‑lhe e acariciei‑a durante um momento
antes de a levar até à rua, onde passaria a noite. Olhei o relógio.
Eram quase duas da manhã e a minha cama chamava‑me.
O meu quarto ficava à frente do da avó, do outro lado do corredor.
Quando lá dormi pela primeira vez, depois da morte dos meus
pais, a minha avó trouxe a minha mobília da casa deles para me ambientar
melhor. E ali continuava. A cama de solteiro, a mesa e o espelho
em madeira pintada de branco, a pequena cómoda.
Apaguei a luz e fechei a porta antes de começar a despir‑me. Tinha
pelo menos cinco pares de calções pretos e muitas camisolas de
manga curta brancas porque estas se manchavam com facilidade. E
o número de pares de meias brancas enrolados numa gaveta era impossível
de determinar. Não precisaria de lavar roupa naquela noite.
Estava demasiado cansada para um duche. Escovei os dentes e limpei a
maquilhagem da cara, aplicando hidratante e soltando o cabelo.
Enfiei‑me na cama com a minha camisola preferida do Rato Mickey,
que me chegava quase aos joelhos. Voltei‑me para o lado, como
sempre fazia, e apreciei o silêncio do quarto. A maior parte dos cérebros
desligava‑se durante a noite e a vibração desaparecia. Deixava de
ser necessário repelir intrusões. Com aquela paz, podia pensar apenas
nos olhos escuros do vampiro antes de a exaustão trazer um sono profundo.
À hora de almoço no dia seguinte estava sentada na minha cadeira
reclinável em alumínio no quintal da frente, deixando que o sol me
bronzeasse a pele. Vestia o meu biquíni preferido e agradava‑me muito
que estivesse um pouco mais folgado do que no Verão anterior.
Foi então que ouvi um carro subir a estrada e a carrinha preta
de Jason com a decoração azul e rosa parou a um metro dos meus
pés.
23
Jason desceu (esqueci‑me de referir que a carrinha tem daqueles
pneus altos) e caminhou até junto de mim. Vestia a roupa de trabalho
habitual, camisa e calças caqui, com a faca embainhada presa
ao cinto, como sucedia com a maior parte dos trabalhadores rodoviários
do condado. Percebi que estava irritado pela forma como se
movia.
Pus os óculos escuros.
— Porque não me disseste que espancaste os Rattray ontem à noite?
— Deixou‑se cair sobre a cadeira de jardim a meu lado. — Onde
está a avó? — perguntou, fora de tempo.
— A pendurar a roupa — respondi. Usava a máquina de secar
quando necessário, mas agradava‑lhe pendurar as roupas molhadas
ao sol. Obviamente, o arame da roupa ficava no quintal dos fundos,
o local onde deveria estar. — E também faz o almoço. Bife grelhado
com as batatas‑doces e o feijão‑verde que semeou no ano passado —
acrescentei, sabendo que isso o distrairia um pouco. Esperei que a avó
ficasse nas traseiras. Não queria que ouvisse aquela conversa. — Fala
baixo — disse‑lhe.
— O Rene Lenier mal podia esperar que chegasse ao trabalho
hoje de manhã para me contar tudo. Foi à caravana dos Rattray para
comprar erva ontem à noite e Denise parecia capaz de matar alguém.
O Rene diz que escapou por pouco, tal era a fúria. Teve de a ajudar a
levar Mack para dentro da caravana e, depois, levaram‑no ao hospital
em Monroe. — Jason olhou‑me com ar de reprovação.
— O Rene contou‑te que o Mack me atacou com uma faca? —
perguntei, decidindo que passar à ofensiva seria a melhor forma de
lidar com a situação. Conseguia perceber que o desagrado de Jason se
devia sobretudo ao facto de ter sabido por terceiros.
— Se a Denise falou disso ao Rene, ele não me disse nada — disse,
lentamente, e vi a raiva alterar‑lhe a face vistosa. — Atacou‑te com uma
faca?
— E tive de me defender — continuei, como se fosse uma questão
simples. — Além disso, ele ficou com a tua corrente. — Era a verdade,
ainda que um pouco manipulada. — Fui dizer‑te — continuei —,
mas, quando voltei ao bar, tinhas ido embora com a DeeAnne e, como
estava bem, achei que não valeria a pena procurar‑te. Sabia que te sentirias
obrigado a procurá‑lo se te falasse da faca — acrescentei, com diplomacia.
Havia muita verdade naquela afirmação. Jason adorava uma
boa zaragata.
24
— E que fazias tu com eles afinal? — perguntou, mas estava mais
tranquilo e eu sabia que ele começava a aceitar.
— Sabias que, além de venderem droga, as Ratazanas drenam
vampiros?
Agora estava fascinado.
— Não. E então?
— Um dos meus clientes ontem à noite era um vampiro e estavam
a drená‑lo no parque de estacionamento do Merlotte’s! Tinha de fazer
alguma coisa.
— Há um vampiro em Bon Temps?
— Sim. Mesmo que não queiras um vampiro como melhor amigo,
não podes deixar que lixo como as Ratazanas o drenem. Não é o
mesmo que tirar a gasolina de um carro. E tê‑lo‑iam deixado na floresta
para morrer. — Apesar de não terem partilhado comigo as suas
intenções, era esse o meu palpite. Mesmo que o cobrissem para sobreviver
até ao nascer do sol, um vampiro drenado levava pelo menos
vinte anos a recuperar. Pelo menos, foi isso que disseram na Oprah. E
só se houver outro vampiro a cuidar dele.
— O vampiro estava no bar enquanto lá estive? — perguntou Jason,
espantado.
— Sim. O tipo de cabelo escuro sentado com as Ratazanas.
A minha alcunha para os Rattray fez Jason sorrir. Mas ainda não
estava disposto a passar à frente da noite anterior.
— Como soubeste que era um vampiro? — perguntou, mas,
quando me olhou, percebi que preferia ter ficado calado.
— Soube — disse, com a minha voz mais neutra.
— Claro. — E partilhámos um diálogo completo sem palavras.
— Homulka não tem um vampiro — disse Jason, pensativo. Inclinou
a cara para apanhar sol e soube que pisávamos terreno perigoso.
— É verdade — concordei.
Homulka era a cidade que Bon Temps adorava odiar. Há inúmeras
gerações que éramos rivais no futebol americano, no basquetebol e
na importância histórica.
— Nem Roedale — disse a avó atrás de nós, fazendo‑nos saltar
aos dois. Reconheço a Jason o mérito de abraçar a avó de cada vez que
a vê.
— Avó, tem comida que chegue para mim?
— Para ti e para mais dois iguais — respondeu, sorrindo‑lhe. Conhecia
os seus defeitos (e também os meus), mas amava‑o. — Falava
25
ao telefone com a Everlee Mason. Contou‑me que passaste a noite com
a DeeAnne.
— Bolas. Não posso fazer nada nesta cidade sem ser apanhado —
disse Jason, fingindo‑se irritado.
— Essa DeeAnne — disse a avó em tom de aviso quando começámos
a dirigir‑nos para casa — já ficou grávida pelo menos uma vez.
Toma cuidado para não lhe acontecer o mesmo contigo ou acabarás a
pagar‑lhe para o resto da vida. Ainda que talvez seja essa a única forma
de ter netos!
A comida esperava‑nos sobre a mesa e, depois de Jason pendurar
o chapéu, sentámo‑nos e demos graças. A avó e Jason começaram
a trocar mexericos (apesar de preferirem chamar‑lhe «pôr a conversa
em dia») sobre as pessoas da nossa pequena cidade e do condado circundante.
O meu irmão trabalhava para o estado como supervisor de
equipas de construção e reparação de estradas. Parecia‑me que o dia
de Jason consistia em guiar uma carrinha do estado, picando o ponto
e guiando a sua carrinha própria durante toda a noite. Rene fazia parte
de uma das equipas a cargo de Jason e tinham andado juntos no liceu.
Passavam muito tempo com Hoyt Fortenberry.
— Sookie, tive de substituir o esquentador em casa — disse Jason,
subitamente. Vivia na casa que pertenceu aos nossos pais, onde vivíamos
quando morreram numa inundação. Passámos a viver com a avó
depois disso, mas, quando Jason acabou os seus dois anos de universidade
e foi trabalhar para o estado, mudou‑se para a velha casa, mesmo
que, oficialmente, metade me pertença.
— Precisas de dinheiro? — perguntei.
— Não. Está tudo bem,
Ambos trabalhávamos, mas recebíamos dinheiro adicional de
um fundo estabelecido quando se descobriu um poço de petróleo na
propriedade dos nossos pais. O poço esgotou‑se pouco depois, mas
os nossos pais e a avó certificaram‑se de que o dinheiro seria investido.
Esse rendimento salvou‑nos aos dois de muitas dificuldades. Não
sei como a avó teria conseguido criar‑nos de outra forma. Ela estava
determinada a não vender o terreno, mas o seu rendimento provinha
quase exclusivamente da segurança social. Era uma razão para eu não
arranjar um apartamento. Se comprasse comida enquanto vivia com
ela, parecer‑lhe‑ia razoável, mas se comprasse comida e lha trouxesse,
deixando‑a na mesa antes de ir para uma casa própria, passaria a ser
caridade e ela ficaria furiosa.
26
— Que tipo de esquentador compraste? — perguntei, apenas para
mostrar interesse.
Estava ansioso por me dizer. Jason tinha a mania dos electrodomésticos
e queria descrever em pormenor a sua busca comparativa por
um novo esquentador. Ouvi com a atenção que consegui reunir.
Até que se interrompeu a si próprio.
— Sook, lembras‑te da Maudette Pickens?
— Claro — respondi, surpreendida. — Acabámos o liceu no mesmo
ano.
— Alguém a matou no apartamento ontem à noite.
Aquilo chocou‑me a mim e à avó.
— Quando? — perguntou ela, intrigada por ainda não saber do
assunto.
— Encontraram‑na hoje de manhã no quarto. O patrão tentou
ligar‑lhe para descobrir porque não tinha vindo trabalhar ontem
e hoje e ninguém atendeu. Foi até lá e pediu ao proprietário para
abrir a porta. O apartamento dela é à frente do de DeeAnne. — Bon
Temps tinha apenas um complexo de apartamentos legítimo, três
edifícios de dois andares dispostos em U. Sabíamos exactamente a
que se referia.
— Mataram‑na aí? — Senti‑me mal. Lembrava‑me muito bem
de Maudette. Tinha um queixo saliente e um rabo quadrado, cabelo
preto bonito e ombros largos. Subsistia sem grandes ambições ou
inteligência. Não estava segura, mas parecia‑me que trabalhara no
Grabbit Kwik, uma mistura de estação de serviço com loja de conveniência.
— Sim. Acho que trabalhava lá há pelo menos um ano — confirmou
Jason.
— Como foi? — A avó tinha aquela expressão receosa e incerta
com que as pessoas simpáticas pedem más notícias.
— Tinha marcas de vampiro na… hmm… na parte interior das
coxas — disse o meu irmão, olhando para o prato. — Mas não foi isso
que a matou. Foi estrangulada. A DeeAnne contou‑me que a Maudette
gostava de ir àquele bar de vampiros em Shreveport quando tinha uns
dias de folga. Talvez isso explique as marcas. Pode não ter sido o vampiro
da Sookie.
— A Maudette era vampirófila? — Senti‑me estranha ao imaginar
a lenta e anafada Maudette dentro dos bizarros vestidos pretos que as
vampirófilas costumavam usar.
27
— Era o quê? — perguntou a avó. Devia ter perdido o episódio da
Sally Jessy em que o fenómeno foi explorado.
— São homens e mulheres que convivem com vampiros e gostam
de ser mordidos. Fãs de vampiros. Acho que não duram muito tempo
porque querem ser mordidos com demasiada avidez e, mais cedo ou
mais tarde, há uma dentada que acaba por ir longe demais.
— Mas não foi uma dentada a matar a Maudette. — A avó queria
certificar‑se de que tinha compreendido bem.
— Não. Foi estrangulada. — Jason terminava o almoço.
— Não abasteces a carrinha no Grabbit? — perguntei eu.
— Claro. Muitos o fazem.
— E não passaste algum tempo com a Maudette? — perguntou
a avó.
— Sim. De certa forma — respondeu Jason com cautela.
Interpretei aquilo como confirmação de que dormia com Maudette
quando não conseguia encontrar ninguém melhor.
— Espero que o xerife não queira falar contigo — disse a avó,
abanando a cabeça como se o gesto conseguisse torná‑lo menos provável.
— O quê? — Jason ficou vermelho e pareceu assumir uma postura
defensiva.
— Vias a Maudette todos os dias quando ias abastecer‑te de gasolina,
namoravas com ela de certa forma e ela aparece morta num apartamento
que conheces bem — resumi‑lhe a situação. Não era muito,
mas era alguma coisa e havia muito poucos homicídios misteriosos em
Bon Temps, fazendo‑me pensar que todas as hipóteses seriam ponderadas
na investigação daquele.
— Não sou o único a cumprir esses requisitos. Há muitos outros
tipos a meter gasolina no mesmo sítio e todos conheciam a Maudette.
— Sim, mas em que sentido? — perguntou a avó, sem rodeios.
— Não era uma prostituta, pois não? Terá falado a alguém sobre os
homens na sua vida.
— Gostava de se divertir. Mas não era profissional. — Era simpático
de Jason defender Maudette, levando em consideração o que
conhecia da sua personalidade egoísta. Comecei a ter uma opinião um
pouco melhor do meu irmão mais velho. — Acho que se sentia sozinha
— acrescentou.
Jason olhou‑nos a ambas e viu que estávamos surpresas e comovidas.
28
— Falando em prostitutas — disse, prontamente —, há uma em
Monroe especializada em vampiros. Tem um tipo por perto com uma
estaca para o caso de algum ir longe demais. Bebe sangue sintético para
garantir abastecimento constante.
Era uma mudança de assunto demasiado brusca. A avó e eu tentámos
pensar numa pergunta que pudéssemos colocar que não fosse
indecente.
— Quanto será que cobra? — atrevi‑me. E, quando Jason partilhou
a quantia que ouvira referir, ficámos as duas chocadas.
Ultrapassado o assunto do homicídio de Maudette, o almoço decorreu
como era habitual, com Jason olhando o relógio e exclamando
que precisava de se ir embora quando chegou a altura de lavar os pratos.
Mas descobri que a mente da avó continuava povoada por vampiros.
Veio ao meu quarto mais tarde, quando eu aplicava a maquilhagem
para ir trabalhar.
— Que idade achas que tem o vampiro que conheceste?
— Não faço ideia, avó. — Aplicava o rímel, abrindo muito os
olhos e tentando manter‑me imóvel para não espetar um olho. Isto alterou‑me
a voz, fazendo‑me parecer alguém que prestava provas para
um filme de terror.
— Achas que… poderá lembrar‑se da guerra?
Não precisei de perguntar a que guerra se referia. Afinal, a avó era
membro destacado dos Descendentes dos Mortos Gloriosos.
— É possível — respondi, voltando a cara para me certificar de
que o rouge estava igualmente distribuído dos dois lados.
— Achas que aceitará vir falar connosco sobre o assunto? Poderíamos
organizar uma reunião especial.
— De noite — recordei.
— Ah. Sim, teria de ser de noite. — Os Descendentes costumavam
reunir‑se ao meio‑dia na biblioteca, trazendo o almoço de casa.
Pensei no assunto. Seria indelicado sugerir ao vampiro que deveria
falar no clube da minha avó porque o salvara dos drenadores, mas
talvez se oferecesse ao perceber a dica. Não me agradava, mas fá‑lo‑ia
pela avó.
— Pergunto‑lhe da próxima vez que vier ao bar — prometi.
— No mínimo, podia vir falar comigo e talvez pudesse gravar as
suas memórias — disse ela. Quase conseguia ouvir o que lhe passava
pela cabeça, imaginando o quanto aquilo lhe agradaria. — Seria muito
interessante para os outros membros — disse, mantendo‑se comedida.
29
Consegui suprimir uma gargalhada.
— Vou sugerir‑lho — disse. — Veremos.
Quando saí, era óbvio que a avó contava com os ovos dentro da
galinha.
Não esperei que Rene Lenier contasse a história do parque de estacionamento
ao Sam. Ele tinha estado muito ocupado. Quando cheguei ao
trabalho nessa tarde, presumi que a agitação que sentia no ar se devesse
ao homicídio de Maudette. Estava enganada.
Sam empurrou‑me para o armazém logo que cheguei. Estava furioso
e não tentava escondê‑lo.
Era a primeira vez que me falava naquele tom e não tardei a estar
prestes a chorar.
— Se achas que um cliente corre perigo, apenas tens que dizer‑me
e serei eu a lidar com o assunto. Não tu — repetia‑o pela sexta vez
quando percebi finalmente que Sam receara pela minha segurança.
Ouvi‑o antes de lhe bloquear os pensamentos. Ler a mente do
patrão pode ser desastroso.
Nunca me tinha ocorrido pedir ajuda a Sam ou a qualquer outra
pessoa.
— Quando te parecer que alguém está a ser agredido no parque
de estacionamento, deves chamar a polícia e não lidar com o assunto
sozinha — bradou. A sua pele clara, sempre corada, estava mais
vermelha do que o habitual, e o cabelo louro parecia não ter sido
penteado.
— Está bem — disse, tentando manter a voz estável e abrindo
muito os olhos para travar as lágrimas. — Vais despedir‑me?
— Não! Não! — exclamou, parecendo ainda mais irritado. — Não
te quero perder! — Segurou‑me pelos ombros e abanou‑me um pouco.
A seguir, olhou‑me fixamente com aqueles olhos azuis intensos e
senti o calor que dele emanava. O toque acelera a minha deficiência,
tornando imperativo que ouça a pessoa que me toca. Olhei‑o nos olhos
por um longo momento antes de me recompor, dando um passo atrás
quando baixou as mãos.
Dei meia volta e saí do armazém, assustada.
Descobrira algumas coisas desconcertantes. Sam desejava‑me e
não conseguia ouvir os seus pensamentos com a mesma clareza dos
pensamentos dos outros. Captara ondas de sentimento, mas nenhum
pensamento. Assemelhava‑se mais a usar um daqueles anéis que mu30
dam de cor conforme a posição em que observam, do que a receber
um fax.
E que fiz eu com essas informações?
Absolutamente nada.
Nunca vira Sam como potencial companheiro de cama, pelo menos
não para mim, por várias razões. Mas a mais simples era o facto
de nunca olhar ninguém dessa forma. Não por não ter hormonas (tenho‑as
em grande número), mas são constantemente reprimidas porque,
para mim, o sexo é um desastre. Conseguem imaginar saber tudo
o que o vosso parceiro pensa? Pois. Coisas como: «Bolas, olhem este
sinal… o rabo dela é um pouco grande… gostava que se movesse um
pouco para a direita… porque não percebe a indirecta e…?» Dá para
perceber. Acreditem quando vos digo que é tenebroso a nível emocional.
E, durante o sexo, não há forma de manter as defesas elevadas.
Além disso, gosto de Sam como patrão e gosto do meu emprego,
que me permite sair e me mantém activa e a ganhar dinheiro, impedindo‑me
de me transformar na reclusa que a minha avó receia. Trabalhar
num escritório é difícil para mim e a universidade tornou‑se impossível
devido aos níveis de concentração exigidos. Esgotava‑me.
Tentaria acalmar o desejo que sentia vindo dele. Não se tinha declarado
nem me tinha atirado ao chão do armazém. Captara os seus
sentimentos e podia ignorá‑los se quisesse. Compreendia a delicadeza
do assunto e questionava‑me se Sam me teria tocado de propósito,
como se soubesse aquilo que eu era.
Tive o cuidado de não ficar sozinha com ele, mas tenho de admitir
que, nessa noite, me senti muito abalada.
As duas noites seguintes foram melhores. Voltámos à nossa relação
confortável. Senti‑me aliviada. Senti‑me desiludida. E também me
senti esgotada porque a morte de Maudette desencadeou um aumento
da clientela do Merlotte’s. Circulavam vários tipos de rumores por Bon
Temps e uma equipa de reportagem de Shreveport fez uma reportagem
breve sobre o homicídio sinistro de Maudette Pickens. Apesar de
não ter ido ao funeral, a minha avó foi e contou‑me que a igreja estava
apinhada. A pobre Maudette anafada, com as suas coxas mordidas, era
mais interessante morta do que alguma vez fora em vida.
Estava quase a ter dois dias de folga e preocupou‑me não conseguir
contactar Bill, o vampiro. Precisava de lhe transmitir o pedido da
avó. Não voltara ao bar e começava a questionar‑me se ele o faria.
31
Mack e Denise também não tinham voltado, mas Rene Lenier e
Hoyt Fortenberry certificaram‑se de que eu soubesse que tinham ameaçado
fazer‑me coisas terríveis. Não posso dizer que me tenha sentido
grandemente alarmada. Lixo criminoso como as Ratazanas vagueava
pelas estradas e parques de caravanas da América, não sendo suficientemente
inteligentes para se fixarem num local nem para adoptar
formas de vida produtivas. Não deixavam qualquer marca positiva no
mundo e achava‑os insignificantes. Ignorei os avisos de Rene.
Mas ele gostava de os transmitir. Rene Lenier era baixo como
Sam, mas, enquanto Sam era louro e corado, Rene era moreno e tinha
a cabeça coberta de cabelo áspero e preto com alguns traços grisalhos.
Vinha com frequência ao bar para um copo e para visitar Arlene porque
(como gostava de contar) era a sua ex‑mulher preferida. Tivera
três. Hoyt Fortenberry era mais discreto que Rene. Não era louro nem
moreno, nem alto nem baixo. Parecia sempre bem‑disposto e dava gorjetas
decentes. Admirava o meu irmão muito além do que, na minha
opinião, Jason merecia.
Fiquei feliz por Rene e Hoyt não estarem presentes na noite em
que o vampiro regressou.
Sentou‑se à mesma mesa.
Agora que o tinha à minha frente, senti‑me algo envergonhada.
Percebi que esquecera o brilho quase imperceptível da sua pele. Exagerara
a sua altura nas minhas memórias e também a definição das linhas
da boca.
— Que queres beber? — perguntei.
Olhou‑me. Esquecera também a profundidade do seu olhar. Não
sorriu nem pestanejou. Permaneceu imóvel. Pela segunda vez, deixei‑me
acalmar pelo seu silêncio. Quando baixei a guarda, consegui
sentir a expressão suavizar. Era tão bom como ser massajada (suponho).
— Tu és o quê? — perguntou‑me. Era a segunda vez que tentava
saber.
— Sou uma empregada — disse, voltando a fingir não o ter compreendido.
Conseguia sentir o sorriso a regressar à cara. A minha partícula
de paz desaparecera.
— Vinho tinto — pediu. E, se estava desiludido, não consegui
percebê‑lo pela voz.
— Claro — disse. — O sangue sintético deve chegar amanhã. Posso
falar contigo depois do trabalho? Tenho um favor a pedir‑te.
32
— Com certeza. Estou em dívida. — E não parecia agradar‑lhe.
— Não é um favor para mim! — Também eu começava a ficar
irritada. — É para a minha avó. Se estiveres acordado quando sair do
trabalho… bom… acho que estarás acordado à uma e meia, importas‑te
de vir ter comigo à porta dos funcionários nas traseiras do bar?
— Indiquei‑a com a cabeça e senti o rabo‑de‑cavalo dançar‑me sobre
os ombros. Os olhos dele seguiram o movimento do meu cabelo.
— Com todo o gosto.
Não percebi se aquilo era uma manifestação da cortesia que a avó
insistia ser o padrão no passado ou se estava apenas a gozar comigo.
Resisti à tentação de lhe deitar a língua de fora. Voltei‑lhe as costas
e caminhei até ao balcão. Quando lhe trouxe o vinho, deu‑me uma
gorjeta de vinte por cento. Pouco depois, olhei para a sua mesa, descobrindo
que tinha desaparecido. Eu pensava se ele iria ou não cumprir
a promessa.
Arlene e Dawn saíram antes que estivesse pronta. Sobretudo porque
os suportes de guardanapos da minha zona estavam parcialmente
vazios. Quando fui buscar a mala ao armário no gabinete do Sam, onde
a guardo enquanto trabalho, disse adeus ao patrão. Ouvia‑o na casa de
banho dos homens, provavelmente tentando arranjar uma sanita com
fugas. Entrei na casa de banho das senhoras por um segundo para conferir
o estado do cabelo e da maquilhagem.
Quando saí, reparei que Sam já tinha desligado as luzes do parque
de estacionamento dos clientes. E era apenas a luz de segurança no
poste de electricidade à frente da sua caravana que iluminava o parque
vazio dos empregados. Para diversão de Arlene e Dawn, Sam criara
um jardim à frente da caravana, plantando buxo, e era constantemente
provocado pelo aprumo da sua sebe.
Eu achava que era bonito.
Como sempre, a carrinha de Sam estava estacionada junto à caravana
e o meu carro era o único no parque.
Estiquei‑me, olhei para um lado e para o outro. Não havia sinais
de Bill. Surpreendeu‑me que me sentisse tão desiludida. Esperara realmente
que fosse cortês, mesmo que não o sentisse no coração (teria
coração?).
Sorrindo, pensei que talvez saltasse de uma árvore ou surgisse
do nada com um estrondo! À minha frente, enrolado numa capa preta
com forro vermelho. Mas nada aconteceu. Por isso, fui até ao carro.
Esperara uma surpresa, mas não aquela.
33
Mack Rattray ergueu‑se por trás do meu carro e, com um passo, ficou
suficientemente próximo para me atingir no queixo. Ele não conteve
a força e caí sobre a gravilha como um saco de cimento. Gritei ao cair,
mas o chão roubou‑me o fôlego e alguns pedaços de pele. Fiquei calada,
sem fôlego e indefesa. A seguir, vi Denise recuando a bota pesada e consegui
apenas enrolar‑me antes de os Rattray começarem a pontapear‑me.
A dor foi imediata, intensa e implacável. Lancei instintivamente
os braços sobre a cara, absorvendo os golpes com os antebraços, pernas
e costas.
Durante os primeiros segundos, acho que acreditei que parariam,
insultando‑me e ameaçando‑me antes de partirem. Mas recordo o momento
exacto em que percebi que queriam matar‑me.
Podia ficar ali deitada, aceitando passivamente o espancamento,
mas não deixaria que me matassem.
Segurei a perna que se aproximou em seguida com toda a força.
Tentava mordê‑la, esperando deixar pelo menos uma marca. Nem sequer
sabia a quem pertencia.
Então, por trás de mim, ouvi um rosnado. Pensei que tinham
trazido um cão. O rosnado era decididamente hostil. Se tivesse tido
tempo para reagir devidamente, o cabelo da nuca ter‑se‑ia arrepiado.
Senti mais um pontapé nas costas e o espancamento parou.
O último pontapé provocara um efeito terrível. Conseguia ouvir
a minha respiração dificultada e um estranho ruído gorgolejante que
parecia vir dos pulmões.
— Que raio é aquilo? — perguntou Mack Rattray, parecendo assustado.
Voltei a ouvir o rosnado atrás de mim. E, de outra direcção, ouvi
uma espécie de rugido. Denise começou a gritar e Mack praguejava.
Denise afastou a perna das minhas mãos, que tinham perdido a força
que lhes restava. Os meus braços caíram ao chão. Pareciam estar fora
do meu controlo. Apesar de ter a visão enevoada, conseguia ver que o
braço direito estava partido. Sentia a cara húmida. Assustava‑me continuar
a avaliar os meus ferimentos.
Mack começou a gritar, juntando‑se a Denise e parecia haver um
turbilhão de actividade em meu redor, mas não me conseguia mover.
Via apenas o braço partido, os joelhos esfolados e a escuridão por baixo
do carro.
Algum tempo depois, houve silêncio. Atrás de mim, um cão gania.
Um nariz frio tocou‑me a orelha e uma língua quente lambeu‑a.
34
Tentei erguer a mão para acariciar o animal que me teria salvo a vida,
mas não consegui. Ouvi‑‑me suspirar. Parecia vir de muito longe.
Aceitando os factos, disse:
— Estou a morrer.
Começou a parecer‑me cada vez mais real. Os sapos e os grilos
que cantavam a noite silenciaram‑se com toda a actividade e barulho
no parque de estacionamento e a minha voz fraca ampliou‑se na escuridão.
Estranhamente, ouvi duas vozes depois disso.
Em seguida, dois joelhos cobertos de ganga azul ensanguentada
entraram no meu campo visual. O vampiro Bill debruçou‑se e consegui
ver‑lhe a cara. Tinha a boca manchada de sangue e os caninos expostos,
brilhando na sua brancura contra o lábio inferior. Tentei sorrir‑lhe,
mas a cara não me obedecia.
— Vou pegar‑te ao colo — disse Bill. Parecia calmo.
— Se o fizeres, morro — murmurei.
Olhou‑me com atenção.
— Ainda não — disse, finda a avaliação. Estranhamente, aquilo
fez‑me sentir melhor. Pensei que seria impossível determinar quantos
ferimentos tinha visto durante a vida. — Isto vai doer — advertiu‑me.
Era difícil imaginar algo que não doesse.
Os seus braços deslizaram por baixo de mim, não me dando tempo
para sentir medo. Gritei, mas sem conseguir grande efeito.
— Rápido — disse uma voz urgente.
— Vamos para a floresta, para onde não nos consigam ver — disse
Bill, aninhando o meu corpo contra si, como se não pesasse nada.
Iria enterrar‑me, longe da vista? Depois de me ter salvo das Ratazanas?
Quase não me importava.
O alívio foi pouco quando me deitou sobre um tapete de agulhas
de pinheiro na escuridão da floresta. À distância, conseguia ver o brilho
do parque de estacionamento. Senti o sangue pingar‑me do cabelo,
uma dor no braço partido e a agonia provocada pelos golpes, mas o
mais assustador era o que não sentia.
Não sentia as pernas.
Sentia a barriga cheia e pesada. A expressão «hemorragia interna
» alojou‑se no meu pensamento.
— Morrerás se não fizeres o que te digo — disse‑me Bill.
— Desculpa, mas não quero ser vampira — disse, com voz débil.
— Não serás — insistiu, com delicadeza. — Vais curar‑te. Rapidamente.
Eu tenho a cura. Mas terás de a aceitar.
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— Então cura‑me — sussurrei. — Estou a ir‑me. — Sentia a escuridão
puxar‑me.
No pequeno recanto da minha mente que ainda recebia sinais do
mundo, ouvi Bill grunhir como se tivesse sido ferido. A seguir, alguma
coisa foi pressionada contra a minha boca.
— Bebe — disse.
Tentei colocar a língua de fora e consegui. Bill sangrava e apertava
o pulso para forçar o fluxo de sangue para a minha boca. Lutei
contra o vómito. Mas queria viver. Forcei‑me a engolir. E a engolir
novamente.
Subitamente, o sangue passou a saber bem. Salgado. A essência
da vida. O meu braço intacto ergueu‑se e a mão rodeou o pulso do
vampiro, prendendo‑o à minha boca. Sentia‑me melhor com cada
gole. E, após um minuto, deixei‑me adormecer.
Quando acordei, continuava na floresta, deitada no chão. Alguém
estava deitado a meu lado. Era o vampiro. Conseguia perceber o seu
brilho. Conseguia sentir a sua língua movendo‑se sobre a minha cabeça.
Lambia‑me a ferida. Não podia repreendê‑lo.
— O meu sabor é diferente do das outras pessoas? — perguntei.
— Sim — disse, com voz grave. — Tu és o quê?
Era a terceira vez que me perguntava. A minha avó costumava
dizer que à terceira era de vez.
— Ei, não estou morta — disse. Recordei subitamente que esperara
o fim. Abanei o braço, o que fora partido. Estava fraco, mas já não se
dobrava por onde não devia. Conseguia sentir as pernas e também as
abanei. Tentei inspirar e agradou‑me que o resultado fosse apenas uma
dor ligeira. Esforcei‑me por me sentar. Foi difícil, mas não impossível.
Era como o primeiro dia sem febre depois da pneumonia que me afectou
em criança. Sentia‑me frágil, mas eufórica. Sabia que sobrevivera
a algo horrível.
Antes de acabar de me endireitar, rodeou‑me com os braços e
apertou‑me contra ele. Encostou‑se a uma árvore. Senti‑me muito
confortável no seu colo, com a cabeça contra o peito dele.
— Telepata. É isso que sou — disse. — Consigo ouvir os pensamentos
dos outros.
— Até os meus? — Parecia apenas curioso.
— Não. É por isso que gosto tanto de ti — disse, flutuando num
mar de bem‑estar em tons de rosa. Não via motivo para esconder o que
pensava.
36
Senti‑lhe o peito estremecer quando se riu. A gargalhada parecia
algo enferrujada.
— Não consigo ouvir nada teu — continuei, em tom encantado.
— Não fazes ideia de como isso é tranquilizante. Depois de uma vida
inteira de blá, blá, blá… não ouço nada.
— Como consegues sair com homens? Com homens da tua idade,
cujo único pensamento será certamente encontrar forma de te levar
para a cama.
— Não consigo. É simples. E, francamente, acho que só pensam
em levar as mulheres para a cama em qualquer idade. Não saio com
ninguém. Todos acham que sou maluca porque não lhes consigo dizer
a verdade. E a verdade é que todos aqueles pensamentos, todas aquelas
mentes me deixam à beira da loucura. Tive alguns encontros quando
comecei a trabalhar no bar com tipos que não me conheciam. Mas
era sempre o mesmo. É impossível concentrar‑me em ficar confortável
com um tipo ou em deixar‑me levar pelo momento quando consigo
ouvi‑los pensar se pinto o cabelo, que o meu rabo não é giro ou a imaginar
como serão as minhas mamas.
Subitamente, sentia‑me muito mais alerta e percebi que revelava
muito de mim a esta criatura.
— Desculpa — disse. — Não queria maçar‑te com os meus problemas.
Obrigada por me salvares das Ratazanas.
— A culpa foi minha — disse. Consegui perceber que havia raiva
por baixo da serenidade superficial da sua voz. — Se tivesse tido a cortesia
de chegar a horas, não teria acontecido. Devia‑te algum do meu
sangue. Devia‑te a cura.
— Estão mortos? — Para meu embaraço, a voz falhou‑me quando
fiz a pergunta.
— Sim.
Engoli em seco. Não sentia pena por o mundo ficar livre das Ratazanas.
Mas tinha de enfrentar os factos. Não conseguia escapar à percepção
de que estava sentada no colo de um assassino. No entanto,
sentia‑me muito bem ali, envolvida nos seus braços.
— Isto devia preocupar‑me, mas não é o que acontece — disse,
sem pensar. Senti novamente aquele riso enferrujado.
— Sookie, porque querias falar comigo hoje?
Precisei de me concentrar. Apesar da recuperação milagrosa do
espancamento, sentia‑me um pouco confusa.
—
A minha avó gostava muito de saber que idade tens — disse,
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com hesitação. Não sabia até que ponto o assunto seria pessoal para
um vampiro. O vampiro em questão acariciava‑me as costas como se
afagasse um gatinho.
— Transformaram‑me num vampiro em 1870, quando era um
humano de trinta anos.
Olhei‑o. A sua face reluzente não tinha qualquer expressão e os
seus olhos eram dois poços negros na escuridão da floresta.
— Combateste na guerra?
— Sim.
— Receio que isto te vá enfurecer, mas ela ficaria tão feliz se pudesses
falar um pouco ao seu clube sobre a guerra, sobre como foi na
realidade.
— Clube?
— Pertence aos Descendentes dos Mortos Gloriosos.
— Mortos gloriosos. — O tom de voz do vampiro era impossível
de interpretar, mas conseguia perceber que não se sentia feliz.
— Não seria necessário falares dos vermes, das infecções e da
fome — disse. — Imaginam a guerra à sua maneira e, apesar de não
serem estúpidos (viveram outras guerras), gostariam de saber mais sobre
o modo de vida das pessoas da época, sobre fardas e movimento
de tropas.
— Sobre coisas limpas.
Inspirei fundo.
— Sim.
— Far‑te‑ia feliz se o fizesse?
— Que diferença faz? Faria a minha avó feliz e, já que estás em
Bon Temps e pareces querer viver aqui, seria uma boa acção de relações
públicas.
— Far‑te‑ia feliz?
Era difícil evitar‑lhe as perguntas.
— Sim.
— Então aceito.
— A avó pede para comeres antes de vires — disse.
Voltei a ouvir o riso, desta vez mais profundo.
— Estou com grande vontade de a conhecer. Posso visitar‑te
numa destas noites?
— Ah. Claro. Amanhã é a minha última noite de trabalho e depois
terei dois dias de folga. Quinta‑feira será uma boa noite. — Ergui
o braço para olhar o relógio. Funcionava, mas o vidro estava coberto
38
com sangue seco. — Que nojo — disse, molhando o dedo com saliva
e limpando o vidro. Pressionei o botão que iluminava os ponteiros e
surpreendeu‑me ver a hora.
— É melhor ir para casa. Espero que a avó tenha adormecido.
— Deve ficar preocupada por ficares sozinha até tão tarde — comentou
Bill. O tom parecia reprovador. Talvez pensasse em Maudette?
Por um momento, senti‑me profundamente insegura, pensando se Bill
a teria realmente conhecido, se ela o teria convidado para casa. Mas
rejeitei a ideia porque me recusava teimosamente a pensar na bizarra
e terrível natureza da vida e morte de Maudette. Não queria que esse
horror projectasse a sua sombra sobre a minha pequena felicidade.
— Faz parte do trabalho — disse, secamente. — Não posso evitar.
De qualquer forma, não trabalho todas as noites. Apenas quando
posso.
— Porquê? — O vampiro ajudou‑me a levantar e ergueu‑se sem
qualquer dificuldade.
— As gorjetas são melhores. O trabalho é mais duro. Não há tempo
para pensar.
— Mas a noite é mais perigosa — disse, novamente com tom reprovador.
E deveria sabê‑lo.
— Não fales como a minha avó — repreendi‑o. Estávamos quase
no parque de estacionamento.
— Sou mais velho do que a tua avó — recordou‑me. Aquilo pôs
fim à conversa.
Depois de sair da floresta, deixei‑me ficar a olhar. O parque de
estacionamento estava tão sereno e imóvel como se nada tivesse acontecido
ali, como se não tivesse escapado por pouco de ser espancada
até à morte na gravilha apenas uma hora antes. Como se as Ratazanas
não tivessem sofrido uma morte sangrenta.
As luzes do bar e da caravana de Sam estavam apagadas.
A gravilha estava húmida, mas não por causa do sangue.
A minha mala estava pousada sobre o tejadilho do carro.
— E o cão? — perguntei.
Voltei‑me para o meu salvador.
Já não estava lá.
Desde que os vampiros tinham saído do caixão dois anos
antes (como se costumava dizer com escárnio), esperara que um
deles visitasse Bon Temps. Tínhamos todas as outras minorias na nossa
pequena cidade. Porque não a mais recente? Porque não os não‑mortos
legalmente reconhecidos? Mas o Norte rural do Louisiana parecia não
ser muito apelativo para os vampiros. Por outro lado, Nova Orleães era
um verdadeiro centro de actividade vampírica (ou não tivesse Anne
Rice escrito sobre o assunto).
A viagem de carro entre Bon Temps e Nova Orleães não era assim
tão longa e todos os clientes do bar diziam que, atirando uma pedra na
esquina de uma rua, seria quase inevitável acertar em alguém. Apesar
de isso não ser aconselhável.
Mas eu continuava à espera do meu próprio vampiro.
Pode dizer‑se que não saio muito. E não é por não ser bonita. Porque
sou. Sou loura, tenho olhos azuis e vinte e cinco anos, as minhas
pernas são fortes e o meu peito é considerável, com uma cinturinha de
vespa. Fico bem na farda de Verão que Sam escolheu para as empregadas:
calções pretos, camisola de manga curta branca, meias brancas,
ténis Nike pretos.
Mas tenho uma deficiência. É assim que gosto de a referir.
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Os clientes dizem que sou doida apenas.
Seja como for, o resultado é que saía pouco. Por isso, as pequenas
coisas positivas na minha vida têm um valor multiplicado.
E ele, o vampiro, sentou‑se numa das minhas mesas.
Percebi imediatamente o que era. Espantou‑me que mais ninguém
se tivesse voltado para o olhar fixamente. Não conseguiam perceber!
Mas, para mim, a pele dele parecia ter um brilho ténue e foi
assim que soube.
Poderia ter dançado de alegria e improvisei mesmo uma pequena
coreografia junto ao balcão. Sam Merlotte, o patrão, ergueu o olhar da
bebida que misturava e esboçou um leve sorriso. Peguei no tabuleiro
e no bloco de notas e aproximei‑me da mesa do vampiro. Esperei que
o baton não estivesse borrado e que o rabo‑de‑cavalo continuasse impecável.
Sou um pouco ansiosa e conseguia sentir um sorriso puxando‑me
os cantos da boca para cima.
Parecia imerso em pensamentos e pude mirá‑lo de alto a baixo
antes que voltasse os olhos para mim. Não chegaria ao metro e
oitenta. Tinha cabelo castanho espesso penteado para trás e roçando‑lhe
o colarinho. As patilhas pareciam estranhamente antiquadas.
Era pálido, obviamente. Afinal, estava morto, acreditando nas velhas
histórias. A teoria politicamente correcta, que os próprios vampiros
aprovavam de forma pública, dizia que aquele tipo fora vítima de um
vírus que o deixara aparentemente morto durante um par de dias e,
a partir daí, alérgico à luz do sol, à prata e ao alho. Os pormenores
dependiam do jornal que se lesse. Estavam todos cheios de coisas
sobre vampiros.
Os seus lábios eram encantadores e bem definidos e tinha sobrancelhas
escuras arqueadas. O nariz projectava‑se do arco das
sobrancelhas, como o nariz de um príncipe num mosaico bizantino.
Quando finalmente ergueu os olhos, vi que eram ainda mais
escuros do que o cabelo e que o branco em redor era incrivelmente
límpido.
— Que deseja beber? — perguntei, quase demasiado feliz para
articular as palavras.
O vampiro ergueu as sobrancelhas.
— Têm aquele sangue sintético engarrafado? — perguntou.
—
Não. Lamento muito. O Sam encomendou algum. Deve chegar
na semana que vem.
— Então traga‑me vinho tinto, por favor — disse com uma voz
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calma e cristalina, como um regato correndo sobre seixos. Ri‑me alto.
Era demasiado perfeito.
— Não ligue à Sookie, senhor. É maluca — disse uma voz familiar,
vinda do compartimento encostado à parede. Toda a minha felicidade
se desvaneceu, apesar de ainda conseguir sentir o sorriso nos lábios. O
vampiro fitou‑me, vendo a alegria abandonar‑me a expressão.
— Trago já o seu vinho — disse, afastando‑me, sem sequer olhar
a cara arrogante de Mack Rattray. Estava lá quase todas as noites com
a mulher, Denise. Chamava‑lhes Senhor e Senhora Ratazana. Desde
que se mudaram para uma caravana alugada em Four Tracks Corner,
esforçavam‑se por me fazer a vida miserável. Esperava que partissem
de Bon Temps tão subitamente como haviam chegado.
Quando entraram no Merlotte’s pela primeira vez, cometi a indiscrição
de ouvir os seus pensamentos (sim, eu sei que não é uma
atitude muito elevada). Mas aborreço‑me como toda a gente e, apesar
de passar a maior parte do meu tempo a bloquear os pensamentos
alheios que tentam infiltrar‑se no meu cérebro, por vezes não consigo
resistir. E foi assim que descobri algumas coisas sobre os Rattray que
talvez mais ninguém soubesse. Por um lado, sabia que tinham estado
presos, apesar de não saber porquê. Por outro, lera os pensamentos
enojantes de Mack Rattray sobre esta vossa amiga. E, a seguir, descobri
nos pensamentos de Denise que abandonara um bebé que tivera dois
anos antes, um bebé que não era de Mack.
Além disto tudo, não davam gorjetas.
Sam encheu um copo com o vinho tinto da casa, olhando a mesa
do vampiro enquanto o colocava no meu tabuleiro.
Quando voltou a olhar para mim, pude ver que também sabia
aquilo que era o nosso novo cliente. Os olhos de Sam são tão azuis
como os de Paul Newman, em contraste com os meus, de um azul mais
acinzentado. Sam também é louro, mas tem o cabelo mais fino e a cor
aproxima‑se de um amarelo‑torrado. Está sempre levemente queimado
pelo sol e, apesar de parecer magro quando vestido, vi‑o descarregar
carrinhas sem camisa e a sua musculatura do tronco é considerável.
Nunca ouço os seus pensamentos. É o patrão. Tive de me despedir
de empregos por descobrir coisas sobre os patrões que preferia não ter
sabido.
Sam não fez qualquer comentário e limitou‑se a passar‑me o vinho.
Olhei o copo para me certificar de que estava perfeitamente limpo
e voltei à mesa do vampiro.
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— Aqui tem — disse, com cerimónia, colocando o copo com cuidado
na mesa à sua frente. Voltou a olhar‑me e aproveitei a oportunidade
para lhe apreciar os belos olhos enquanto podia. — Bom proveito
— disse‑lhe, orgulhosa.
Atrás de mim, Mack Rattray berrou:
— Ei, Sookie! Precisamos de outro jarro de cerveja!
Suspirei e voltei‑me para recolher o jarro vazio da mesa das Ratazanas.
Reparei que Denise estava na sua melhor forma. Vestia um top revelador
e calções curtos, com o emaranhado de cabelo castanho cobrindo‑lhe
a cabeça com madeixas atraentes. Não era realmente bonita, mas
era tão exuberante e confiante que se levava algum tempo a percebê‑lo.
Um pouco mais tarde, para meu desconsolo, vi que os Rattray se
tinham mudado para a mesa do vampiro. Falavam com ele. Não o via
responder muito, mas também não se ia embora.
— Olha para aquilo! — disse a Arlene, outra das empregadas,
sem esconder o desagrado. Arlene é uma ruiva sardenta, dez anos mais
velha do que eu e veterana de quatro casamentos. Tem dois filhos e,
ocasionalmente, acho que me considera a sua terceira criança.
— Tipo novo, hã? — disse, com interesse limitado. Arlene namorava
com Rene Lenier e, apesar de eu não conseguir perceber a atracção,
parecia satisfeita. Penso que Rene foi o seu segundo marido.
— É um vampiro — disse, forçada a partilhar o meu encanto com
alguém.
— A sério? Aqui? Vejam só… — comentou, sorrindo um pouco
para mostrar que percebia a minha satisfação. — Não pode ser muito
esperto para estar com as Ratazanas. Mas é verdade que Denise lhe está
a montar um espectáculo e tanto.
Só percebi quando Arlene o referiu. É muito melhor do que eu
a avaliar situações sexuais devido à sua grande experiência e à minha
falta dela.
O vampiro tinha fome. Sempre ouvira dizer que o sangue sintético
desenvolvido pelos japoneses conseguia assegurar a nutrição
dos vampiros mas sem satisfazer a fome e era por isso que existiam
«acidentes lamentáveis» de tempos a tempos. (Era esse o eufemismo
vampírico para a morte sangrenta de um humano). E ali estava Denise
Rattray, acariciando o pescoço, movendo a mão de um lado para o
outro… Que cabra.
Jason, o meu irmão, entrou no bar nesse momento e aproximou‑se
para me dar um abraço. Sabe que as mulheres apreciam um
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homem que é bondoso para a família e para os deficientes e abraçar‑me
proporciona‑lhe esse benefício duplo à reputação. Não que precise de
benefícios adicionais aos que possui limitando‑se a ser ele próprio. É
bonito. Também pode ser velhaco, mas a maioria das mulheres parece
perfeitamente disposta a ignorar esse pormenor.
— Olá, mana. Como está a avó?
— Está bem. Na mesma. Vem visitá‑la.
— Claro que sim. Quem está cá hoje?
— Vê por ti próprio. — Reparei que, quando Jason olhou em redor,
houve um erguer de mãos femininas até ao cabelo, até às blusas e
aos lábios.
— Ei. Está ali a DeeAnne. Está livre?
— Veio com um camionista de Hammond. Foi à casa de banho.
É melhor teres cuidado.
Jason sorriu‑me e maravilhei‑me por as outras mulheres não conseguirem
ver o egoísmo daquele sorriso. Até Arlene ajeitava a camisola
quando Jason entrava e, após quatro maridos, devia saber alguma coisa
sobre como avaliar homens. A outra empregada, Dawn, compôs o
cabelo e endireitou as costas para realçar as mamas. Jason limitou‑se
a acenar‑lhe amigavelmente. Ela fingiu um esgar de desdém. Estava
chateada com Jason mas, mesmo assim, queria que ele reparasse nela.
Fiquei muito ocupada. Todos vinham ao Merlotte’s no sábado à
noite durante algum tempo e acabei por perder de vista o meu vampiro.
Quando voltei a poder procurá‑lo, vi que conversava com Denise.
Mack olhava‑o com uma expressão de tamanha avidez que me deixou
preocupada.
Aproximei‑me da mesa, fitando Mack. Finalmente, baixei as defesas
e ouvi.
Mack e Denise tinham estado presos por drenar vampiros.
Profundamente angustiada, consegui, mesmo assim, levar um
jarro de cerveja e alguns copos até uma mesa rodeada por quatro clientes
ruidosos. Porque se dizia que o sangue dos vampiros conseguia aliviar
temporariamente os sintomas de doença e aumentar a potência
sexual, sendo uma espécie de combinação de Prednisona com Viagra,
existia um grande mercado negro para o sangue de vampiro genuíno
e não diluído. Em todos os mercados há fornecedores e acabara de
descobrir dois: o miserável casal Ratazana. Tinham capturado e drenado
vampiros, vendendo os pequenos frascos de sangue a preços que
chegavam aos duzentos dólares cada um. Há dois anos que era a droga
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mais apetecida. Alguns compradores enlouqueciam depois de beber
sangue puro de vampiro, mas isso não diminuía a procura.
Habitualmente, os vampiros drenados não sobreviviam durante
muito tempo. Os drenadores trespassavam‑nos com uma estaca ou
limitavam‑se a abandoná‑los em terreno aberto. Quando o sol nascia,
era o fim. Também havia relatos ocasionais de inversão dos papéis,
quando os vampiros conseguiam libertar‑se e deixavam para trás os
drenadores sem vida.
O meu vampiro levantava‑se e saía com as Ratazanas. Mack cruzou
o olhar com o meu e percebi que a minha expressão o deixava perturbado.
Voltou a cara, ignorando‑me como ignorava qualquer outra
pessoa.
Aquilo deixava‑me furiosa. Realmente furiosa.
Que deveria fazer? Enquanto tentava ultrapassar o turbilhão mental,
eles saíam pela porta. O vampiro acreditaria em mim se corresse
atrás deles e lhe contasse? Mais ninguém acreditava. Ou, se acreditassem,
iriam odiar‑me e recear‑me por ler os pensamentos escondidos
na cabeça das pessoas. Arlene implorara‑me para ler os pensamentos
do quarto marido quando ele veio buscá‑la numa noite por estar certa
de que ele pensava em abandoná‑la a ela e aos miúdos, mas não o fiz
porque queria manter a única amiga que me restava. Não conseguira
pedir‑mo directamente porque isso seria admitir que eu tinha este
dom, esta maldição. E as pessoas não eram capazes de o admitir. Precisavam
de acreditar que era maluca. E, por vezes, era‑o realmente.
Hesitei, confusa, assustada e furiosa até perceber que precisava de
agir. O olhar que Mack me lançou foi a última gota. Olhou‑me como se
fosse um risco insignificante.
Corri até ao balcão, aproximando‑me de Jason, ocupado a encantar
DeeAnne. A opinião generalizada dizia que não seria necessário
grande encantamento. O camionista de Hammond olhava com desagrado
do lado oposto.
— Jason — disse, urgentemente. Ele voltou‑se, lançando‑me um
olhar de aviso. — Ainda tens aquela corrente na carrinha?
— Não saio de casa sem ela — disse, languidamente, procurando
sinais de perigo na minha expressão. — Vais lutar com alguém, Sookie?
Sorri‑lhe, tão habituada a sorrisos falsos que a reacção me era
natural.
— Espero que não — disse, alegremente.
— Precisas de ajuda? — Afinal, era meu irmão.
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— Não, obrigada — disse‑lhe, tentando parecer convincente. E
fui ter com Arlene. — Olha, tenho de sair um pouco mais cedo. As
minhas mesas têm pouca gente. Podes substituir‑me? — Não me lembrava
de alguma vez ter pedido tal coisa a Arlene, apesar de lhe eu a ter
substítuido em muitas ocasiões. Também se ofereceu para me ajudar.
— Não é preciso — disse. — Se conseguir, ainda regresso. Se limpares
as minhas mesas, limpo‑te a caravana.
Arlene acenou avidamente com a cabeça, fazendo dançar a cabeleira
ruiva.
Apontei a porta dos funcionários e fiz os dedos caminhar, indicando
a Sam que me ia.
Ele acenou afirmativamente. Não parecia satisfeito.
E lá fui eu pela porta dos fundos, tentando silenciar os pés sobre
a gravilha. O parque de estacionamento dos funcionários ficava nas
traseiras do bar, acessível por uma porta que abria para o armazém. Estava
ocupado pelo carro do cozinheiro, pelo de Arlene, pelo de Dawn
e pelo meu. À minha direita, a leste, a carrinha de Sam estava parada à
frente da sua caravana.
Saí do parque coberto de gravilha e passei ao alcatrão do parque
de estacionamento dos clientes, que era maior, a oeste do bar. A floresta
rodeava a clareira ocupada pelo Merlotte’s e a gravilha cobria também
os limites do parque. Sam mantinha‑o bem iluminado e o brilho surreal
dos candeeiros altos tornava tudo estranho.
Vi o carro desportivo vermelho e amolgado do Senhor e da Senhora
Ratazana e percebi que estariam perto.
Finalmente, encontrei a carrinha de Jason. Era preta, decorada
com chamas azuis e rosa nos lados. Adorava dar nas vistas. Aproximei‑me
da traseira e vasculhei na caixa, procurando a corrente de aros
metálicos grossos que transportava consigo para a eventualidade de se
envolver numa rixa. Puxei‑a e transportei‑a contra o corpo para não
fazer barulho.
Pensei por um segundo. O único local vagamente sossegado para
onde as Ratazanas poderiam ter atraído o vampiro era a extremidade
do parque de estacionamento, onde a copa das árvores caía sobre os
carros. Avancei nessa direcção, tentando mover‑me com rapidez mas
em silêncio.
Ia parando pelo caminho, pondo‑me à escuta. Não tardei a ouvir
um gemido e vozes difusas. Serpenteei entre os carros e avistei‑os precisamente
onde esperara que estivessem. O vampiro estava deitado de
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costas no chão, com a face alterada pela agonia e o brilho de correntes
cruzando‑lhe os pulsos e prolongando‑se até aos tornozelos. Prata. Havia
já dois pequenos frascos de sangue no chão ao lado dos pés de Denise
e, enquanto eu observava, ajustou um novo tubo de ensaio à agulha.
O torniquete acima do cotovelo cravava‑se cruelmente no braço.
Estavam de costas voltadas para mim e o vampiro ainda não me
vira. Desembrulhei a corrente, deixando um metro solto. Quem atacaria
primeiro? Eram ambos pequenos e viciosos.
Recordei o olhar de desprezo de Mack e o facto de nunca me ter
deixado gorjeta. Seria ele o primeiro.
Nunca lutara com ninguém antes. De alguma forma, sentia‑me
ansiosa pela experiência.
Saí de trás de uma carrinha e lancei a corrente. Caiu sobre as costas
de Mack, ajoelhado ao lado da vítima. Gritou e ergueu‑se de um
salto. Depois de um olhar rápido, Denise dedicou‑se a aplicar o terceiro
tubo de ensaio. A mão de Mack desceu até à bota e voltou a subir
com um brilho repentino. Engoli em seco. Tinha uma faca.
— Ora bolas… — disse, sorrindo‑lhe.
— Sua cabra maluca! — berrou. Parecia ávido por usar a faca.
Estava demasiado concentrada para manter a barreira mental e não
consegui evitar uma visão clara do que Mack me queria fazer. Enfureceu‑me.
Lancei‑me sobre ele com toda a intenção de o ferir o mais
possível. Mas estava preparado e, enquanto eu fazia girar a corrente,
lançou‑se para a frente com a faca. Tentou cortar‑me o braço e falhou
por muito pouco. A corrente rodeou‑lhe o pescoço escanzelado. O
grito triunfal de Mack transformou‑se num gargarejo. Deixou cair a
faca e segurou os aros metálicos com ambas as mãos. Sem conseguir
respirar, deixou‑se cair de joelhos no pavimento, puxando‑me a corrente
das mãos.
Lá se ia a corrente de Jason. Baixei‑me e peguei na faca, segurando‑a
como se soubesse usá‑la. Denise avançava, parecendo uma
bruxa saloia, coberta pelas linhas e sombras lançadas pelas luzes de
segurança.
Parou quando viu que segurava a faca de Mack. Praguejou e disse
coisas terríveis. Esperei até se calar para dizer:
— Põe‑te a andar. Depressa.
O olhar de ódio quase abria buracos na minha pele. Tentou levar
os frascos de sangue mas disse‑lhe para os deixar. Limitou‑se a erguer
Mack. Este continuava a debater‑se para respirar e a segurar a corren17
te. Denise arrastou‑o até ao carro e enfiou‑o no banco do passageiro.
Tirando as chaves do bolso, sentou‑se ao volante.
Ouvindo o motor, percebi subitamente que as Ratazanas tinham
agora outra arma. Movendo‑me com rapidez inédita, corri até à cabeça
do vampiro e disse‑lhe:
— Empurra com os pés!
Segurei‑o por baixo dos braços e puxei com toda a minha força.
Ele percebeu e ajudou, movendo os pés como lhe dissera. Tínhamos
chegado à linha de árvores quando o carro vermelho se lançou ruidosamente
sobre nós. Denise não nos apanhou por pouco, forçada a mudar
a trajectória para evitar embater num pinheiro. Em seguida, ouvi o
som do motor poderoso do carro das Ratazanas a afastar‑se.
— Uau! — Tentei recuperar o fôlego e ajoelhei‑me ao lado do
vampiro porque as pernas não conseguiam suportar‑me. Inspirei profundamente
durante um minuto, procurando normalizar a respiração.
O vampiro moveu‑se um pouco e olhei‑o. Para meu horror, vi que se
erguia fumo dos pulsos, nos pontos tocados pela corrente. — Ó, pobre
coitado — disse, recriminando‑me por não cuidar imediatamente
dele. Ainda a tentar recuperar o fôlego, comecei a libertá‑lo do que parecia
ser uma longa e fina corrente de prata. — Coitadinho — murmurei,
não me apercebendo imediatamente do absurdo do comentário.
Tenho dedos ágeis e consegui libertar‑lhe rapidamente os pulsos. Pensei
em como as Ratazanas teriam conseguido distraí‑lo para o prender
com a corrente e dei comigo a corar enquanto o fazia.
O vampiro ergueu os braços até ao peito enquanto lhe libertava
as pernas. Os tornozelos estavam melhor porque os drenadores não se
tinham dado ao trabalho de lhe puxar as calças de ganga para cima,
não colocando a corrente sobre a pele nua.
— Lamento não ter chegado mais depressa — desculpei‑me. —
Vais sentir‑te melhor num minuto, não é? Queres que me vá embora?
— Não.
Aquilo fez‑me sentir muito bem até acrescentar:
— Podem regressar e ainda não consigo enfrentá‑los.
A sua voz calma parecia irregular, mas não posso dizer que ouvi
a respiração acelerada.
Esbocei‑lhe uma expressão azeda e, enquanto recuperava, tomei
precauções. Voltei‑lhe as costas, dando‑lhe privacidade. Sei como é desagradável
que nos observem fixamente enquanto sofremos. Sentei‑me
no alcatrão, vigiando o parque de estacionamento. Vários carros par18
tiram e outros chegaram, mas nenhum se aproximou de nós. Percebi
pela deslocação de ar atrás de mim que o vampiro se pusera de pé.
Não falou de imediato. Voltei a cabeça para a esquerda para
olhá‑lo. Estava mais próximo do que pensara. Os seus grandes olhos
escuros fixaram‑se nos meus. Os caninos estavam retraídos. Isso desiludiu‑me
um pouco.
— Obrigado — disse, friamente.
Não estava eufórico por ter sido salvo por uma mulher. Típico.
Porque estava a ser tão pouco delicado, achei que também podia
fazer alguma coisa rude e ouvi‑o, abrindo a mente por completo.
E… não ouvi nada.
— Oh… — exclamei, percebendo o choque na minha própria voz
e mal percebendo que falava em voz alta. — Não consigo ouvir‑te.
— Obrigado! — repetiu o vampiro, movendo os lábios de forma
exagerada.
— Não é isso… Consigo ouvir‑te falar, mas… — e, na minha excitação,
fiz algo que habitualmente nunca teria feito porque era demasiado
pessoal e carente, revelando a minha deficiência. Voltei‑me
para ele, pus as mãos de ambos os lados da sua cara pálida e olhei‑o
fixamente. Concentrei‑me com toda a minha força. Nada. Era como
ser forçada a ouvir constantemente num rádio estações que não podia
escolher e, de repente, sintonizar uma frequência vazia.
Era fantástico.
Os seus olhos abriam‑se mais e tornavam‑se mais escuros, apesar
de permanecer completamente imóvel.
— Desculpa — consegui dizer, embaraçada. Afastei as mãos e
recomecei a olhar o parque de estacionamento. Falei ao acaso sobre
Mack e Denise, pensando constantemente em como era maravilhoso
estar acompanhada por alguém que eu não conseguia ouvir a não ser
que ele falasse. Como era belo o seu silêncio.
— … achei melhor vir ver como estavas — concluí, sem ideia do
que dissera antes.
— Vieste salvar‑me. Foi corajoso — disse ele, com uma voz tão
sedutora que teria feito DeeAnne saltar para fora das suas cuecas de
nylon vermelho com um arrepio.
— Pára com isso — disse eu, com rispidez, como o barulho de
um terramoto.
Pareceu surpreso, por um segundo, antes de a sua expressão retornar
à lívida serenidade anterior.
19
— Não tens medo de ficar sozinha com um vampiro faminto? —
perguntou, com um tom matreiro e perigoso na voz.
— Não.
— Achas que, por teres vindo salvar‑me, estás segura? Que mantenho
alguma sentimentalidade depois destes anos todos? É frequente
que os vampiros se voltem contra quem confia neles. Não temos os
mesmos valores dos humanos.
— Muitos humanos voltam‑se contra quem confia neles — referi.
Consigo ser pragmática. — Não sou completamente parva. — Estiquei
o braço e voltei a cara. Enquanto esperava que recuperasse, enrolei a
corrente das Ratazanas em redor do pescoço e dos braços.
Vi‑o estremecer.
— Mas tens uma artéria apetitosa na virilha — disse, depois de
fazer uma pausa para se recompor, com a voz tão sinuosa como uma
serpente num escorrega.
— Nada de palavreado ordinário — disse‑lhe. — Não admito isso.
Olhámo‑nos novamente em silêncio. Receei não voltar a vê‑lo.
Afinal, aquela primeira visita ao Merlotte’s não fora propriamente um
sucesso. Tentava absorver o máximo de pormenores. Recordaria durante
muito, muito tempo, aquele encontro. Era algo raro. Como um
tesouro. Queria voltar a tocar‑lhe a pele. Não conseguia recordar a sensação.
Mas isso seria ultrapassar uma fronteira de decência e poderia
ocasionar que ele fizesse algum disparate sedutor.
— Gostarias de beber o sangue que recolheram? — perguntou
ele, de forma inesperada. — Seria uma maneira de mostrar a minha
gratidão. — Apontou os frascos sobre o alcatrão. — Diz‑se que o nosso
sangue consegue melhorar a vida sexual e a saúde.
— Tenho uma saúde de ferro — disse‑lhe, com toda a honestidade.
— E não tenho propriamente uma vida sexual. Faz o que quiseres
com ele.
— Poderias vendê‑lo — sugeriu, mas achei que o fez apenas para
ver o que eu diria.
— Nem sequer lhe toco — disse, insultada.
— És diferente — disse. — Tu és o quê? — Pareceu conferir uma
lista mental de possibilidades pela forma como me olhava. Para minha
satisfação, não consegui ouvir nada.
— Sou a Sookie Stackhouse e sou uma empregada de bar — disse‑lhe.
— Como te chamas? — Achei que podia perguntar aquilo sem
ser atrevida.
20
— Bill — respondeu.
Não consegui impedir uma gargalhada.
— O vampiro Bill! — disse. — Achei que pudesses ser Antoine,
Basil ou Langford! Bill! — Há muito tempo que não me ria assim. —
Até à vista, Bill. Tenho de voltar para o trabalho. — Conseguia sentir
o sorriso tenso regressar aos meus lábios quando pensei no Merlotte’s.
Pus a mão no ombro de Bill e ergui‑me. Senti que estava rígido e endireitei‑me
tão rapidamente que quase cambaleei. Examinei as meias
para me certificar de que estavam no sítio e procurei mazelas na farda
resultantes do confronto com as Ratazanas. Sacudi o pó do rabo e acenei
a Bill, iniciando a caminhada através do parque de estacionamento.
Fora uma noite estimulante, com muita coisa em que pensar. Reflectindo
no assunto, sentia que o sorriso que esboçava era perfeitamente
justificado.
Mas Jason ficaria muito irritado quando soubesse da corrente.
Nessa noite, depois do trabalho, regressei a casa, cerca de seis quilómetros
a sul do bar. Jason partira (e DeeAnne também) quando regressei
e isso fora outro elemento positivo. Passava a noite em revista quando
cheguei a casa da minha avó, onde vivia. Ficava imediatamente antes
do cemitério de Tall Pines que, por sua vez, se situava junto a uma
estrada secundária de dois sentidos. Foi o meu tetravô que construiu
a casa e gostava de privacidade. Para chegar lá, era necessário sair da
estrada e passar por uma zona arborizada até à clareira em que se situava
a casa.
Não é certamente nenhum monumento histórico, já que a maioria
das partes mais antigas foram arrancadas e substituídas ao longo
dos anos e, obviamente, tem electricidade, canalização e isolamento,
todas essas comodidades modernas. Mas mantém o telhado de zinco
que reflecte a luz nos dias soalheiros. Quando o telhado precisou de ser
substituído, quis instalar telhas comuns, mas a minha avó não concordou.
Apesar de ser eu a pagar, a casa é dela e o zinco manteve‑se.
Mais ou menos histórica, vivi nesta casa desde os meus sete anos
e visitava‑a com frequência antes disso porque gostava muito dela. Era
uma grande e velha casa de família, demasiado grande apenas para a
avó e para mim. Tinha uma fachada ampla, antecedida por um alpendre
coberto e estava pintada de branco, de acordo com as convicções
tradicionalistas da minha avó. Atravessei a grande sala de estar, decorada
com mobiliário velho remendado para servir as nossas necessida21
des, alcançando o corredor e percorrendo‑o até ao primeiro quarto à
esquerda, o maior de todos.
Adele Hale Stackhouse, a minha avó, estava recostada na sua
cama alta, com uma torre de almofadas por trás dos ombros magros.
Vestia uma camisa de noite de algodão com mangas longas, mesmo
com o ar quente daquela noite de Primavera. Tinha o candeeiro da
mesa‑de‑cabeceira ligado e um livro aberto no colo.
— Olá — disse‑lhe.
— Olá, querida.
A minha avó é muito pequena e muito velha, mas o cabelo continua
espesso e tão branco que quase adquire uma muito ligeira tonalidade
esverdeada. Prende‑o junto ao pescoço durante o dia, mas, à
noite, solta‑o ou faz uma trança. Olhei a capa do livro.
— Outra vez a ler a Danielle Steel?
— Esta mulher sabe como contar uma história. — Os maiores
prazeres na sua vida eram ler livros de Danielle Steele, ver as suas telenovelas
(a que chamava «histórias») e participar em reuniões da miríade
de clubes a que parecera ter pertencido durante toda a sua vida
adulta. Os seus preferidos eram os Descendentes dos Mortos Gloriosos
e a Sociedade de Jardinagem de Bon Temps.
— Consegues adivinhar o que aconteceu hoje? — perguntei.
— O que foi? Tens um encontro?
— Não — respondi, esforçando‑me por manter o sorriso. — Um
vampiro veio ao bar.
— Oh! Tinha caninos aguçados?
Vira‑os reflectindo a luz dos candeeiros do parque de estacionamento
enquanto as Ratazanas o drenavam, mas não era necessário
descrever‑lhos.
— Claro. Mas estavam retraídos.
— Um vampiro em Bon Temps. — Notava‑se que estava agradada.
— Mordeu alguém no bar?
— Claro que não, avó! Sentou‑se e bebeu um copo de vinho tinto.
Bom… pediu‑o, mas não bebeu. Acho que só queria companhia.
— Onde será que ele dorme?
— Duvido que o partilhasse com alguém.
— Não — disse, depois de pensar por um momento. — Não me
parece que partilhasse. Gostaste dele?
Ali estava uma pergunta complicada. Pensei antes de responder.
— Não sei. Mas era muito interessante — disse, com cautela.
22
— Gostava muito de o conhecer. — Não me surpreendia que dissesse
isto porque gostava de novidades quase tanto como eu. Não pensava
como aqueles reaccionários que determinaram logo à partida que
os vampiros eram malditos. — Mas é melhor ir dormir. Estava à espera
que chegasses antes de apagar a luz.
Debrucei‑me para a beijar e disse:
— Boa noite.
Fechei a porta até meio quando saí e ouvi‑a desligar o candeeiro.
Tina, a minha gata, aproximou‑se do sítio onde deveria estar a dormir
e roçou‑se nas minhas pernas. Peguei‑lhe e acariciei‑a durante um momento
antes de a levar até à rua, onde passaria a noite. Olhei o relógio.
Eram quase duas da manhã e a minha cama chamava‑me.
O meu quarto ficava à frente do da avó, do outro lado do corredor.
Quando lá dormi pela primeira vez, depois da morte dos meus
pais, a minha avó trouxe a minha mobília da casa deles para me ambientar
melhor. E ali continuava. A cama de solteiro, a mesa e o espelho
em madeira pintada de branco, a pequena cómoda.
Apaguei a luz e fechei a porta antes de começar a despir‑me. Tinha
pelo menos cinco pares de calções pretos e muitas camisolas de
manga curta brancas porque estas se manchavam com facilidade. E
o número de pares de meias brancas enrolados numa gaveta era impossível
de determinar. Não precisaria de lavar roupa naquela noite.
Estava demasiado cansada para um duche. Escovei os dentes e limpei a
maquilhagem da cara, aplicando hidratante e soltando o cabelo.
Enfiei‑me na cama com a minha camisola preferida do Rato Mickey,
que me chegava quase aos joelhos. Voltei‑me para o lado, como
sempre fazia, e apreciei o silêncio do quarto. A maior parte dos cérebros
desligava‑se durante a noite e a vibração desaparecia. Deixava de
ser necessário repelir intrusões. Com aquela paz, podia pensar apenas
nos olhos escuros do vampiro antes de a exaustão trazer um sono profundo.
À hora de almoço no dia seguinte estava sentada na minha cadeira
reclinável em alumínio no quintal da frente, deixando que o sol me
bronzeasse a pele. Vestia o meu biquíni preferido e agradava‑me muito
que estivesse um pouco mais folgado do que no Verão anterior.
Foi então que ouvi um carro subir a estrada e a carrinha preta
de Jason com a decoração azul e rosa parou a um metro dos meus
pés.
23
Jason desceu (esqueci‑me de referir que a carrinha tem daqueles
pneus altos) e caminhou até junto de mim. Vestia a roupa de trabalho
habitual, camisa e calças caqui, com a faca embainhada presa
ao cinto, como sucedia com a maior parte dos trabalhadores rodoviários
do condado. Percebi que estava irritado pela forma como se
movia.
Pus os óculos escuros.
— Porque não me disseste que espancaste os Rattray ontem à noite?
— Deixou‑se cair sobre a cadeira de jardim a meu lado. — Onde
está a avó? — perguntou, fora de tempo.
— A pendurar a roupa — respondi. Usava a máquina de secar
quando necessário, mas agradava‑lhe pendurar as roupas molhadas
ao sol. Obviamente, o arame da roupa ficava no quintal dos fundos,
o local onde deveria estar. — E também faz o almoço. Bife grelhado
com as batatas‑doces e o feijão‑verde que semeou no ano passado —
acrescentei, sabendo que isso o distrairia um pouco. Esperei que a avó
ficasse nas traseiras. Não queria que ouvisse aquela conversa. — Fala
baixo — disse‑lhe.
— O Rene Lenier mal podia esperar que chegasse ao trabalho
hoje de manhã para me contar tudo. Foi à caravana dos Rattray para
comprar erva ontem à noite e Denise parecia capaz de matar alguém.
O Rene diz que escapou por pouco, tal era a fúria. Teve de a ajudar a
levar Mack para dentro da caravana e, depois, levaram‑no ao hospital
em Monroe. — Jason olhou‑me com ar de reprovação.
— O Rene contou‑te que o Mack me atacou com uma faca? —
perguntei, decidindo que passar à ofensiva seria a melhor forma de
lidar com a situação. Conseguia perceber que o desagrado de Jason se
devia sobretudo ao facto de ter sabido por terceiros.
— Se a Denise falou disso ao Rene, ele não me disse nada — disse,
lentamente, e vi a raiva alterar‑lhe a face vistosa. — Atacou‑te com uma
faca?
— E tive de me defender — continuei, como se fosse uma questão
simples. — Além disso, ele ficou com a tua corrente. — Era a verdade,
ainda que um pouco manipulada. — Fui dizer‑te — continuei —,
mas, quando voltei ao bar, tinhas ido embora com a DeeAnne e, como
estava bem, achei que não valeria a pena procurar‑te. Sabia que te sentirias
obrigado a procurá‑lo se te falasse da faca — acrescentei, com diplomacia.
Havia muita verdade naquela afirmação. Jason adorava uma
boa zaragata.
24
— E que fazias tu com eles afinal? — perguntou, mas estava mais
tranquilo e eu sabia que ele começava a aceitar.
— Sabias que, além de venderem droga, as Ratazanas drenam
vampiros?
Agora estava fascinado.
— Não. E então?
— Um dos meus clientes ontem à noite era um vampiro e estavam
a drená‑lo no parque de estacionamento do Merlotte’s! Tinha de fazer
alguma coisa.
— Há um vampiro em Bon Temps?
— Sim. Mesmo que não queiras um vampiro como melhor amigo,
não podes deixar que lixo como as Ratazanas o drenem. Não é o
mesmo que tirar a gasolina de um carro. E tê‑lo‑iam deixado na floresta
para morrer. — Apesar de não terem partilhado comigo as suas
intenções, era esse o meu palpite. Mesmo que o cobrissem para sobreviver
até ao nascer do sol, um vampiro drenado levava pelo menos
vinte anos a recuperar. Pelo menos, foi isso que disseram na Oprah. E
só se houver outro vampiro a cuidar dele.
— O vampiro estava no bar enquanto lá estive? — perguntou Jason,
espantado.
— Sim. O tipo de cabelo escuro sentado com as Ratazanas.
A minha alcunha para os Rattray fez Jason sorrir. Mas ainda não
estava disposto a passar à frente da noite anterior.
— Como soubeste que era um vampiro? — perguntou, mas,
quando me olhou, percebi que preferia ter ficado calado.
— Soube — disse, com a minha voz mais neutra.
— Claro. — E partilhámos um diálogo completo sem palavras.
— Homulka não tem um vampiro — disse Jason, pensativo. Inclinou
a cara para apanhar sol e soube que pisávamos terreno perigoso.
— É verdade — concordei.
Homulka era a cidade que Bon Temps adorava odiar. Há inúmeras
gerações que éramos rivais no futebol americano, no basquetebol e
na importância histórica.
— Nem Roedale — disse a avó atrás de nós, fazendo‑nos saltar
aos dois. Reconheço a Jason o mérito de abraçar a avó de cada vez que
a vê.
— Avó, tem comida que chegue para mim?
— Para ti e para mais dois iguais — respondeu, sorrindo‑lhe. Conhecia
os seus defeitos (e também os meus), mas amava‑o. — Falava
25
ao telefone com a Everlee Mason. Contou‑me que passaste a noite com
a DeeAnne.
— Bolas. Não posso fazer nada nesta cidade sem ser apanhado —
disse Jason, fingindo‑se irritado.
— Essa DeeAnne — disse a avó em tom de aviso quando começámos
a dirigir‑nos para casa — já ficou grávida pelo menos uma vez.
Toma cuidado para não lhe acontecer o mesmo contigo ou acabarás a
pagar‑lhe para o resto da vida. Ainda que talvez seja essa a única forma
de ter netos!
A comida esperava‑nos sobre a mesa e, depois de Jason pendurar
o chapéu, sentámo‑nos e demos graças. A avó e Jason começaram
a trocar mexericos (apesar de preferirem chamar‑lhe «pôr a conversa
em dia») sobre as pessoas da nossa pequena cidade e do condado circundante.
O meu irmão trabalhava para o estado como supervisor de
equipas de construção e reparação de estradas. Parecia‑me que o dia
de Jason consistia em guiar uma carrinha do estado, picando o ponto
e guiando a sua carrinha própria durante toda a noite. Rene fazia parte
de uma das equipas a cargo de Jason e tinham andado juntos no liceu.
Passavam muito tempo com Hoyt Fortenberry.
— Sookie, tive de substituir o esquentador em casa — disse Jason,
subitamente. Vivia na casa que pertenceu aos nossos pais, onde vivíamos
quando morreram numa inundação. Passámos a viver com a avó
depois disso, mas, quando Jason acabou os seus dois anos de universidade
e foi trabalhar para o estado, mudou‑se para a velha casa, mesmo
que, oficialmente, metade me pertença.
— Precisas de dinheiro? — perguntei.
— Não. Está tudo bem,
Ambos trabalhávamos, mas recebíamos dinheiro adicional de
um fundo estabelecido quando se descobriu um poço de petróleo na
propriedade dos nossos pais. O poço esgotou‑se pouco depois, mas
os nossos pais e a avó certificaram‑se de que o dinheiro seria investido.
Esse rendimento salvou‑nos aos dois de muitas dificuldades. Não
sei como a avó teria conseguido criar‑nos de outra forma. Ela estava
determinada a não vender o terreno, mas o seu rendimento provinha
quase exclusivamente da segurança social. Era uma razão para eu não
arranjar um apartamento. Se comprasse comida enquanto vivia com
ela, parecer‑lhe‑ia razoável, mas se comprasse comida e lha trouxesse,
deixando‑a na mesa antes de ir para uma casa própria, passaria a ser
caridade e ela ficaria furiosa.
26
— Que tipo de esquentador compraste? — perguntei, apenas para
mostrar interesse.
Estava ansioso por me dizer. Jason tinha a mania dos electrodomésticos
e queria descrever em pormenor a sua busca comparativa por
um novo esquentador. Ouvi com a atenção que consegui reunir.
Até que se interrompeu a si próprio.
— Sook, lembras‑te da Maudette Pickens?
— Claro — respondi, surpreendida. — Acabámos o liceu no mesmo
ano.
— Alguém a matou no apartamento ontem à noite.
Aquilo chocou‑me a mim e à avó.
— Quando? — perguntou ela, intrigada por ainda não saber do
assunto.
— Encontraram‑na hoje de manhã no quarto. O patrão tentou
ligar‑lhe para descobrir porque não tinha vindo trabalhar ontem
e hoje e ninguém atendeu. Foi até lá e pediu ao proprietário para
abrir a porta. O apartamento dela é à frente do de DeeAnne. — Bon
Temps tinha apenas um complexo de apartamentos legítimo, três
edifícios de dois andares dispostos em U. Sabíamos exactamente a
que se referia.
— Mataram‑na aí? — Senti‑me mal. Lembrava‑me muito bem
de Maudette. Tinha um queixo saliente e um rabo quadrado, cabelo
preto bonito e ombros largos. Subsistia sem grandes ambições ou
inteligência. Não estava segura, mas parecia‑me que trabalhara no
Grabbit Kwik, uma mistura de estação de serviço com loja de conveniência.
— Sim. Acho que trabalhava lá há pelo menos um ano — confirmou
Jason.
— Como foi? — A avó tinha aquela expressão receosa e incerta
com que as pessoas simpáticas pedem más notícias.
— Tinha marcas de vampiro na… hmm… na parte interior das
coxas — disse o meu irmão, olhando para o prato. — Mas não foi isso
que a matou. Foi estrangulada. A DeeAnne contou‑me que a Maudette
gostava de ir àquele bar de vampiros em Shreveport quando tinha uns
dias de folga. Talvez isso explique as marcas. Pode não ter sido o vampiro
da Sookie.
— A Maudette era vampirófila? — Senti‑me estranha ao imaginar
a lenta e anafada Maudette dentro dos bizarros vestidos pretos que as
vampirófilas costumavam usar.
27
— Era o quê? — perguntou a avó. Devia ter perdido o episódio da
Sally Jessy em que o fenómeno foi explorado.
— São homens e mulheres que convivem com vampiros e gostam
de ser mordidos. Fãs de vampiros. Acho que não duram muito tempo
porque querem ser mordidos com demasiada avidez e, mais cedo ou
mais tarde, há uma dentada que acaba por ir longe demais.
— Mas não foi uma dentada a matar a Maudette. — A avó queria
certificar‑se de que tinha compreendido bem.
— Não. Foi estrangulada. — Jason terminava o almoço.
— Não abasteces a carrinha no Grabbit? — perguntei eu.
— Claro. Muitos o fazem.
— E não passaste algum tempo com a Maudette? — perguntou
a avó.
— Sim. De certa forma — respondeu Jason com cautela.
Interpretei aquilo como confirmação de que dormia com Maudette
quando não conseguia encontrar ninguém melhor.
— Espero que o xerife não queira falar contigo — disse a avó,
abanando a cabeça como se o gesto conseguisse torná‑lo menos provável.
— O quê? — Jason ficou vermelho e pareceu assumir uma postura
defensiva.
— Vias a Maudette todos os dias quando ias abastecer‑te de gasolina,
namoravas com ela de certa forma e ela aparece morta num apartamento
que conheces bem — resumi‑lhe a situação. Não era muito,
mas era alguma coisa e havia muito poucos homicídios misteriosos em
Bon Temps, fazendo‑me pensar que todas as hipóteses seriam ponderadas
na investigação daquele.
— Não sou o único a cumprir esses requisitos. Há muitos outros
tipos a meter gasolina no mesmo sítio e todos conheciam a Maudette.
— Sim, mas em que sentido? — perguntou a avó, sem rodeios.
— Não era uma prostituta, pois não? Terá falado a alguém sobre os
homens na sua vida.
— Gostava de se divertir. Mas não era profissional. — Era simpático
de Jason defender Maudette, levando em consideração o que
conhecia da sua personalidade egoísta. Comecei a ter uma opinião um
pouco melhor do meu irmão mais velho. — Acho que se sentia sozinha
— acrescentou.
Jason olhou‑nos a ambas e viu que estávamos surpresas e comovidas.
28
— Falando em prostitutas — disse, prontamente —, há uma em
Monroe especializada em vampiros. Tem um tipo por perto com uma
estaca para o caso de algum ir longe demais. Bebe sangue sintético para
garantir abastecimento constante.
Era uma mudança de assunto demasiado brusca. A avó e eu tentámos
pensar numa pergunta que pudéssemos colocar que não fosse
indecente.
— Quanto será que cobra? — atrevi‑me. E, quando Jason partilhou
a quantia que ouvira referir, ficámos as duas chocadas.
Ultrapassado o assunto do homicídio de Maudette, o almoço decorreu
como era habitual, com Jason olhando o relógio e exclamando
que precisava de se ir embora quando chegou a altura de lavar os pratos.
Mas descobri que a mente da avó continuava povoada por vampiros.
Veio ao meu quarto mais tarde, quando eu aplicava a maquilhagem
para ir trabalhar.
— Que idade achas que tem o vampiro que conheceste?
— Não faço ideia, avó. — Aplicava o rímel, abrindo muito os
olhos e tentando manter‑me imóvel para não espetar um olho. Isto alterou‑me
a voz, fazendo‑me parecer alguém que prestava provas para
um filme de terror.
— Achas que… poderá lembrar‑se da guerra?
Não precisei de perguntar a que guerra se referia. Afinal, a avó era
membro destacado dos Descendentes dos Mortos Gloriosos.
— É possível — respondi, voltando a cara para me certificar de
que o rouge estava igualmente distribuído dos dois lados.
— Achas que aceitará vir falar connosco sobre o assunto? Poderíamos
organizar uma reunião especial.
— De noite — recordei.
— Ah. Sim, teria de ser de noite. — Os Descendentes costumavam
reunir‑se ao meio‑dia na biblioteca, trazendo o almoço de casa.
Pensei no assunto. Seria indelicado sugerir ao vampiro que deveria
falar no clube da minha avó porque o salvara dos drenadores, mas
talvez se oferecesse ao perceber a dica. Não me agradava, mas fá‑lo‑ia
pela avó.
— Pergunto‑lhe da próxima vez que vier ao bar — prometi.
— No mínimo, podia vir falar comigo e talvez pudesse gravar as
suas memórias — disse ela. Quase conseguia ouvir o que lhe passava
pela cabeça, imaginando o quanto aquilo lhe agradaria. — Seria muito
interessante para os outros membros — disse, mantendo‑se comedida.
29
Consegui suprimir uma gargalhada.
— Vou sugerir‑lho — disse. — Veremos.
Quando saí, era óbvio que a avó contava com os ovos dentro da
galinha.
Não esperei que Rene Lenier contasse a história do parque de estacionamento
ao Sam. Ele tinha estado muito ocupado. Quando cheguei ao
trabalho nessa tarde, presumi que a agitação que sentia no ar se devesse
ao homicídio de Maudette. Estava enganada.
Sam empurrou‑me para o armazém logo que cheguei. Estava furioso
e não tentava escondê‑lo.
Era a primeira vez que me falava naquele tom e não tardei a estar
prestes a chorar.
— Se achas que um cliente corre perigo, apenas tens que dizer‑me
e serei eu a lidar com o assunto. Não tu — repetia‑o pela sexta vez
quando percebi finalmente que Sam receara pela minha segurança.
Ouvi‑o antes de lhe bloquear os pensamentos. Ler a mente do
patrão pode ser desastroso.
Nunca me tinha ocorrido pedir ajuda a Sam ou a qualquer outra
pessoa.
— Quando te parecer que alguém está a ser agredido no parque
de estacionamento, deves chamar a polícia e não lidar com o assunto
sozinha — bradou. A sua pele clara, sempre corada, estava mais
vermelha do que o habitual, e o cabelo louro parecia não ter sido
penteado.
— Está bem — disse, tentando manter a voz estável e abrindo
muito os olhos para travar as lágrimas. — Vais despedir‑me?
— Não! Não! — exclamou, parecendo ainda mais irritado. — Não
te quero perder! — Segurou‑me pelos ombros e abanou‑me um pouco.
A seguir, olhou‑me fixamente com aqueles olhos azuis intensos e
senti o calor que dele emanava. O toque acelera a minha deficiência,
tornando imperativo que ouça a pessoa que me toca. Olhei‑o nos olhos
por um longo momento antes de me recompor, dando um passo atrás
quando baixou as mãos.
Dei meia volta e saí do armazém, assustada.
Descobrira algumas coisas desconcertantes. Sam desejava‑me e
não conseguia ouvir os seus pensamentos com a mesma clareza dos
pensamentos dos outros. Captara ondas de sentimento, mas nenhum
pensamento. Assemelhava‑se mais a usar um daqueles anéis que mu30
dam de cor conforme a posição em que observam, do que a receber
um fax.
E que fiz eu com essas informações?
Absolutamente nada.
Nunca vira Sam como potencial companheiro de cama, pelo menos
não para mim, por várias razões. Mas a mais simples era o facto
de nunca olhar ninguém dessa forma. Não por não ter hormonas (tenho‑as
em grande número), mas são constantemente reprimidas porque,
para mim, o sexo é um desastre. Conseguem imaginar saber tudo
o que o vosso parceiro pensa? Pois. Coisas como: «Bolas, olhem este
sinal… o rabo dela é um pouco grande… gostava que se movesse um
pouco para a direita… porque não percebe a indirecta e…?» Dá para
perceber. Acreditem quando vos digo que é tenebroso a nível emocional.
E, durante o sexo, não há forma de manter as defesas elevadas.
Além disso, gosto de Sam como patrão e gosto do meu emprego,
que me permite sair e me mantém activa e a ganhar dinheiro, impedindo‑me
de me transformar na reclusa que a minha avó receia. Trabalhar
num escritório é difícil para mim e a universidade tornou‑se impossível
devido aos níveis de concentração exigidos. Esgotava‑me.
Tentaria acalmar o desejo que sentia vindo dele. Não se tinha declarado
nem me tinha atirado ao chão do armazém. Captara os seus
sentimentos e podia ignorá‑los se quisesse. Compreendia a delicadeza
do assunto e questionava‑me se Sam me teria tocado de propósito,
como se soubesse aquilo que eu era.
Tive o cuidado de não ficar sozinha com ele, mas tenho de admitir
que, nessa noite, me senti muito abalada.
As duas noites seguintes foram melhores. Voltámos à nossa relação
confortável. Senti‑me aliviada. Senti‑me desiludida. E também me
senti esgotada porque a morte de Maudette desencadeou um aumento
da clientela do Merlotte’s. Circulavam vários tipos de rumores por Bon
Temps e uma equipa de reportagem de Shreveport fez uma reportagem
breve sobre o homicídio sinistro de Maudette Pickens. Apesar de
não ter ido ao funeral, a minha avó foi e contou‑me que a igreja estava
apinhada. A pobre Maudette anafada, com as suas coxas mordidas, era
mais interessante morta do que alguma vez fora em vida.
Estava quase a ter dois dias de folga e preocupou‑me não conseguir
contactar Bill, o vampiro. Precisava de lhe transmitir o pedido da
avó. Não voltara ao bar e começava a questionar‑me se ele o faria.
31
Mack e Denise também não tinham voltado, mas Rene Lenier e
Hoyt Fortenberry certificaram‑se de que eu soubesse que tinham ameaçado
fazer‑me coisas terríveis. Não posso dizer que me tenha sentido
grandemente alarmada. Lixo criminoso como as Ratazanas vagueava
pelas estradas e parques de caravanas da América, não sendo suficientemente
inteligentes para se fixarem num local nem para adoptar
formas de vida produtivas. Não deixavam qualquer marca positiva no
mundo e achava‑os insignificantes. Ignorei os avisos de Rene.
Mas ele gostava de os transmitir. Rene Lenier era baixo como
Sam, mas, enquanto Sam era louro e corado, Rene era moreno e tinha
a cabeça coberta de cabelo áspero e preto com alguns traços grisalhos.
Vinha com frequência ao bar para um copo e para visitar Arlene porque
(como gostava de contar) era a sua ex‑mulher preferida. Tivera
três. Hoyt Fortenberry era mais discreto que Rene. Não era louro nem
moreno, nem alto nem baixo. Parecia sempre bem‑disposto e dava gorjetas
decentes. Admirava o meu irmão muito além do que, na minha
opinião, Jason merecia.
Fiquei feliz por Rene e Hoyt não estarem presentes na noite em
que o vampiro regressou.
Sentou‑se à mesma mesa.
Agora que o tinha à minha frente, senti‑me algo envergonhada.
Percebi que esquecera o brilho quase imperceptível da sua pele. Exagerara
a sua altura nas minhas memórias e também a definição das linhas
da boca.
— Que queres beber? — perguntei.
Olhou‑me. Esquecera também a profundidade do seu olhar. Não
sorriu nem pestanejou. Permaneceu imóvel. Pela segunda vez, deixei‑me
acalmar pelo seu silêncio. Quando baixei a guarda, consegui
sentir a expressão suavizar. Era tão bom como ser massajada (suponho).
— Tu és o quê? — perguntou‑me. Era a segunda vez que tentava
saber.
— Sou uma empregada — disse, voltando a fingir não o ter compreendido.
Conseguia sentir o sorriso a regressar à cara. A minha partícula
de paz desaparecera.
— Vinho tinto — pediu. E, se estava desiludido, não consegui
percebê‑lo pela voz.
— Claro — disse. — O sangue sintético deve chegar amanhã. Posso
falar contigo depois do trabalho? Tenho um favor a pedir‑te.
32
— Com certeza. Estou em dívida. — E não parecia agradar‑lhe.
— Não é um favor para mim! — Também eu começava a ficar
irritada. — É para a minha avó. Se estiveres acordado quando sair do
trabalho… bom… acho que estarás acordado à uma e meia, importas‑te
de vir ter comigo à porta dos funcionários nas traseiras do bar?
— Indiquei‑a com a cabeça e senti o rabo‑de‑cavalo dançar‑me sobre
os ombros. Os olhos dele seguiram o movimento do meu cabelo.
— Com todo o gosto.
Não percebi se aquilo era uma manifestação da cortesia que a avó
insistia ser o padrão no passado ou se estava apenas a gozar comigo.
Resisti à tentação de lhe deitar a língua de fora. Voltei‑lhe as costas
e caminhei até ao balcão. Quando lhe trouxe o vinho, deu‑me uma
gorjeta de vinte por cento. Pouco depois, olhei para a sua mesa, descobrindo
que tinha desaparecido. Eu pensava se ele iria ou não cumprir
a promessa.
Arlene e Dawn saíram antes que estivesse pronta. Sobretudo porque
os suportes de guardanapos da minha zona estavam parcialmente
vazios. Quando fui buscar a mala ao armário no gabinete do Sam, onde
a guardo enquanto trabalho, disse adeus ao patrão. Ouvia‑o na casa de
banho dos homens, provavelmente tentando arranjar uma sanita com
fugas. Entrei na casa de banho das senhoras por um segundo para conferir
o estado do cabelo e da maquilhagem.
Quando saí, reparei que Sam já tinha desligado as luzes do parque
de estacionamento dos clientes. E era apenas a luz de segurança no
poste de electricidade à frente da sua caravana que iluminava o parque
vazio dos empregados. Para diversão de Arlene e Dawn, Sam criara
um jardim à frente da caravana, plantando buxo, e era constantemente
provocado pelo aprumo da sua sebe.
Eu achava que era bonito.
Como sempre, a carrinha de Sam estava estacionada junto à caravana
e o meu carro era o único no parque.
Estiquei‑me, olhei para um lado e para o outro. Não havia sinais
de Bill. Surpreendeu‑me que me sentisse tão desiludida. Esperara realmente
que fosse cortês, mesmo que não o sentisse no coração (teria
coração?).
Sorrindo, pensei que talvez saltasse de uma árvore ou surgisse
do nada com um estrondo! À minha frente, enrolado numa capa preta
com forro vermelho. Mas nada aconteceu. Por isso, fui até ao carro.
Esperara uma surpresa, mas não aquela.
33
Mack Rattray ergueu‑se por trás do meu carro e, com um passo, ficou
suficientemente próximo para me atingir no queixo. Ele não conteve
a força e caí sobre a gravilha como um saco de cimento. Gritei ao cair,
mas o chão roubou‑me o fôlego e alguns pedaços de pele. Fiquei calada,
sem fôlego e indefesa. A seguir, vi Denise recuando a bota pesada e consegui
apenas enrolar‑me antes de os Rattray começarem a pontapear‑me.
A dor foi imediata, intensa e implacável. Lancei instintivamente
os braços sobre a cara, absorvendo os golpes com os antebraços, pernas
e costas.
Durante os primeiros segundos, acho que acreditei que parariam,
insultando‑me e ameaçando‑me antes de partirem. Mas recordo o momento
exacto em que percebi que queriam matar‑me.
Podia ficar ali deitada, aceitando passivamente o espancamento,
mas não deixaria que me matassem.
Segurei a perna que se aproximou em seguida com toda a força.
Tentava mordê‑la, esperando deixar pelo menos uma marca. Nem sequer
sabia a quem pertencia.
Então, por trás de mim, ouvi um rosnado. Pensei que tinham
trazido um cão. O rosnado era decididamente hostil. Se tivesse tido
tempo para reagir devidamente, o cabelo da nuca ter‑se‑ia arrepiado.
Senti mais um pontapé nas costas e o espancamento parou.
O último pontapé provocara um efeito terrível. Conseguia ouvir
a minha respiração dificultada e um estranho ruído gorgolejante que
parecia vir dos pulmões.
— Que raio é aquilo? — perguntou Mack Rattray, parecendo assustado.
Voltei a ouvir o rosnado atrás de mim. E, de outra direcção, ouvi
uma espécie de rugido. Denise começou a gritar e Mack praguejava.
Denise afastou a perna das minhas mãos, que tinham perdido a força
que lhes restava. Os meus braços caíram ao chão. Pareciam estar fora
do meu controlo. Apesar de ter a visão enevoada, conseguia ver que o
braço direito estava partido. Sentia a cara húmida. Assustava‑me continuar
a avaliar os meus ferimentos.
Mack começou a gritar, juntando‑se a Denise e parecia haver um
turbilhão de actividade em meu redor, mas não me conseguia mover.
Via apenas o braço partido, os joelhos esfolados e a escuridão por baixo
do carro.
Algum tempo depois, houve silêncio. Atrás de mim, um cão gania.
Um nariz frio tocou‑me a orelha e uma língua quente lambeu‑a.
34
Tentei erguer a mão para acariciar o animal que me teria salvo a vida,
mas não consegui. Ouvi‑‑me suspirar. Parecia vir de muito longe.
Aceitando os factos, disse:
— Estou a morrer.
Começou a parecer‑me cada vez mais real. Os sapos e os grilos
que cantavam a noite silenciaram‑se com toda a actividade e barulho
no parque de estacionamento e a minha voz fraca ampliou‑se na escuridão.
Estranhamente, ouvi duas vozes depois disso.
Em seguida, dois joelhos cobertos de ganga azul ensanguentada
entraram no meu campo visual. O vampiro Bill debruçou‑se e consegui
ver‑lhe a cara. Tinha a boca manchada de sangue e os caninos expostos,
brilhando na sua brancura contra o lábio inferior. Tentei sorrir‑lhe,
mas a cara não me obedecia.
— Vou pegar‑te ao colo — disse Bill. Parecia calmo.
— Se o fizeres, morro — murmurei.
Olhou‑me com atenção.
— Ainda não — disse, finda a avaliação. Estranhamente, aquilo
fez‑me sentir melhor. Pensei que seria impossível determinar quantos
ferimentos tinha visto durante a vida. — Isto vai doer — advertiu‑me.
Era difícil imaginar algo que não doesse.
Os seus braços deslizaram por baixo de mim, não me dando tempo
para sentir medo. Gritei, mas sem conseguir grande efeito.
— Rápido — disse uma voz urgente.
— Vamos para a floresta, para onde não nos consigam ver — disse
Bill, aninhando o meu corpo contra si, como se não pesasse nada.
Iria enterrar‑me, longe da vista? Depois de me ter salvo das Ratazanas?
Quase não me importava.
O alívio foi pouco quando me deitou sobre um tapete de agulhas
de pinheiro na escuridão da floresta. À distância, conseguia ver o brilho
do parque de estacionamento. Senti o sangue pingar‑me do cabelo,
uma dor no braço partido e a agonia provocada pelos golpes, mas o
mais assustador era o que não sentia.
Não sentia as pernas.
Sentia a barriga cheia e pesada. A expressão «hemorragia interna
» alojou‑se no meu pensamento.
— Morrerás se não fizeres o que te digo — disse‑me Bill.
— Desculpa, mas não quero ser vampira — disse, com voz débil.
— Não serás — insistiu, com delicadeza. — Vais curar‑te. Rapidamente.
Eu tenho a cura. Mas terás de a aceitar.
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— Então cura‑me — sussurrei. — Estou a ir‑me. — Sentia a escuridão
puxar‑me.
No pequeno recanto da minha mente que ainda recebia sinais do
mundo, ouvi Bill grunhir como se tivesse sido ferido. A seguir, alguma
coisa foi pressionada contra a minha boca.
— Bebe — disse.
Tentei colocar a língua de fora e consegui. Bill sangrava e apertava
o pulso para forçar o fluxo de sangue para a minha boca. Lutei
contra o vómito. Mas queria viver. Forcei‑me a engolir. E a engolir
novamente.
Subitamente, o sangue passou a saber bem. Salgado. A essência
da vida. O meu braço intacto ergueu‑se e a mão rodeou o pulso do
vampiro, prendendo‑o à minha boca. Sentia‑me melhor com cada
gole. E, após um minuto, deixei‑me adormecer.
Quando acordei, continuava na floresta, deitada no chão. Alguém
estava deitado a meu lado. Era o vampiro. Conseguia perceber o seu
brilho. Conseguia sentir a sua língua movendo‑se sobre a minha cabeça.
Lambia‑me a ferida. Não podia repreendê‑lo.
— O meu sabor é diferente do das outras pessoas? — perguntei.
— Sim — disse, com voz grave. — Tu és o quê?
Era a terceira vez que me perguntava. A minha avó costumava
dizer que à terceira era de vez.
— Ei, não estou morta — disse. Recordei subitamente que esperara
o fim. Abanei o braço, o que fora partido. Estava fraco, mas já não se
dobrava por onde não devia. Conseguia sentir as pernas e também as
abanei. Tentei inspirar e agradou‑me que o resultado fosse apenas uma
dor ligeira. Esforcei‑me por me sentar. Foi difícil, mas não impossível.
Era como o primeiro dia sem febre depois da pneumonia que me afectou
em criança. Sentia‑me frágil, mas eufórica. Sabia que sobrevivera
a algo horrível.
Antes de acabar de me endireitar, rodeou‑me com os braços e
apertou‑me contra ele. Encostou‑se a uma árvore. Senti‑me muito
confortável no seu colo, com a cabeça contra o peito dele.
— Telepata. É isso que sou — disse. — Consigo ouvir os pensamentos
dos outros.
— Até os meus? — Parecia apenas curioso.
— Não. É por isso que gosto tanto de ti — disse, flutuando num
mar de bem‑estar em tons de rosa. Não via motivo para esconder o que
pensava.
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Senti‑lhe o peito estremecer quando se riu. A gargalhada parecia
algo enferrujada.
— Não consigo ouvir nada teu — continuei, em tom encantado.
— Não fazes ideia de como isso é tranquilizante. Depois de uma vida
inteira de blá, blá, blá… não ouço nada.
— Como consegues sair com homens? Com homens da tua idade,
cujo único pensamento será certamente encontrar forma de te levar
para a cama.
— Não consigo. É simples. E, francamente, acho que só pensam
em levar as mulheres para a cama em qualquer idade. Não saio com
ninguém. Todos acham que sou maluca porque não lhes consigo dizer
a verdade. E a verdade é que todos aqueles pensamentos, todas aquelas
mentes me deixam à beira da loucura. Tive alguns encontros quando
comecei a trabalhar no bar com tipos que não me conheciam. Mas
era sempre o mesmo. É impossível concentrar‑me em ficar confortável
com um tipo ou em deixar‑me levar pelo momento quando consigo
ouvi‑los pensar se pinto o cabelo, que o meu rabo não é giro ou a imaginar
como serão as minhas mamas.
Subitamente, sentia‑me muito mais alerta e percebi que revelava
muito de mim a esta criatura.
— Desculpa — disse. — Não queria maçar‑te com os meus problemas.
Obrigada por me salvares das Ratazanas.
— A culpa foi minha — disse. Consegui perceber que havia raiva
por baixo da serenidade superficial da sua voz. — Se tivesse tido a cortesia
de chegar a horas, não teria acontecido. Devia‑te algum do meu
sangue. Devia‑te a cura.
— Estão mortos? — Para meu embaraço, a voz falhou‑me quando
fiz a pergunta.
— Sim.
Engoli em seco. Não sentia pena por o mundo ficar livre das Ratazanas.
Mas tinha de enfrentar os factos. Não conseguia escapar à percepção
de que estava sentada no colo de um assassino. No entanto,
sentia‑me muito bem ali, envolvida nos seus braços.
— Isto devia preocupar‑me, mas não é o que acontece — disse,
sem pensar. Senti novamente aquele riso enferrujado.
— Sookie, porque querias falar comigo hoje?
Precisei de me concentrar. Apesar da recuperação milagrosa do
espancamento, sentia‑me um pouco confusa.
—
A minha avó gostava muito de saber que idade tens — disse,
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com hesitação. Não sabia até que ponto o assunto seria pessoal para
um vampiro. O vampiro em questão acariciava‑me as costas como se
afagasse um gatinho.
— Transformaram‑me num vampiro em 1870, quando era um
humano de trinta anos.
Olhei‑o. A sua face reluzente não tinha qualquer expressão e os
seus olhos eram dois poços negros na escuridão da floresta.
— Combateste na guerra?
— Sim.
— Receio que isto te vá enfurecer, mas ela ficaria tão feliz se pudesses
falar um pouco ao seu clube sobre a guerra, sobre como foi na
realidade.
— Clube?
— Pertence aos Descendentes dos Mortos Gloriosos.
— Mortos gloriosos. — O tom de voz do vampiro era impossível
de interpretar, mas conseguia perceber que não se sentia feliz.
— Não seria necessário falares dos vermes, das infecções e da
fome — disse. — Imaginam a guerra à sua maneira e, apesar de não
serem estúpidos (viveram outras guerras), gostariam de saber mais sobre
o modo de vida das pessoas da época, sobre fardas e movimento
de tropas.
— Sobre coisas limpas.
Inspirei fundo.
— Sim.
— Far‑te‑ia feliz se o fizesse?
— Que diferença faz? Faria a minha avó feliz e, já que estás em
Bon Temps e pareces querer viver aqui, seria uma boa acção de relações
públicas.
— Far‑te‑ia feliz?
Era difícil evitar‑lhe as perguntas.
— Sim.
— Então aceito.
— A avó pede para comeres antes de vires — disse.
Voltei a ouvir o riso, desta vez mais profundo.
— Estou com grande vontade de a conhecer. Posso visitar‑te
numa destas noites?
— Ah. Claro. Amanhã é a minha última noite de trabalho e depois
terei dois dias de folga. Quinta‑feira será uma boa noite. — Ergui
o braço para olhar o relógio. Funcionava, mas o vidro estava coberto
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com sangue seco. — Que nojo — disse, molhando o dedo com saliva
e limpando o vidro. Pressionei o botão que iluminava os ponteiros e
surpreendeu‑me ver a hora.
— É melhor ir para casa. Espero que a avó tenha adormecido.
— Deve ficar preocupada por ficares sozinha até tão tarde — comentou
Bill. O tom parecia reprovador. Talvez pensasse em Maudette?
Por um momento, senti‑me profundamente insegura, pensando se Bill
a teria realmente conhecido, se ela o teria convidado para casa. Mas
rejeitei a ideia porque me recusava teimosamente a pensar na bizarra
e terrível natureza da vida e morte de Maudette. Não queria que esse
horror projectasse a sua sombra sobre a minha pequena felicidade.
— Faz parte do trabalho — disse, secamente. — Não posso evitar.
De qualquer forma, não trabalho todas as noites. Apenas quando
posso.
— Porquê? — O vampiro ajudou‑me a levantar e ergueu‑se sem
qualquer dificuldade.
— As gorjetas são melhores. O trabalho é mais duro. Não há tempo
para pensar.
— Mas a noite é mais perigosa — disse, novamente com tom reprovador.
E deveria sabê‑lo.
— Não fales como a minha avó — repreendi‑o. Estávamos quase
no parque de estacionamento.
— Sou mais velho do que a tua avó — recordou‑me. Aquilo pôs
fim à conversa.
Depois de sair da floresta, deixei‑me ficar a olhar. O parque de
estacionamento estava tão sereno e imóvel como se nada tivesse acontecido
ali, como se não tivesse escapado por pouco de ser espancada
até à morte na gravilha apenas uma hora antes. Como se as Ratazanas
não tivessem sofrido uma morte sangrenta.
As luzes do bar e da caravana de Sam estavam apagadas.
A gravilha estava húmida, mas não por causa do sangue.
A minha mala estava pousada sobre o tejadilho do carro.
— E o cão? — perguntei.
Voltei‑me para o meu salvador.
Já não estava lá.
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