sexta-feira, 18 de junho de 2010

"A loira fantasma", por Noel Nascimento (parte 5)

- Loba! - João Padeiro ouviu-a rosnar, os dentes faiscando. Rocio, borboleteando na praça escura, fora atacada e sabia que, bisexuada a Loura Fantasma é lésbica. Não podia ser homem, "que só tem uma face", já desfilara no concurso de travestis do Clube Operário.
Não mais era apenas a Claudia Regina agradecendo a Diamond; a Claudia Regina, cara metade de gesso, metade de carne, buscando quem a atropelara na Avenida República Argentina. Nem alguma outra alma tentando vingar-se de um assassino. Projeção da besta demonólatra do mundo, Nereide irradiava sexualidade no corpo astral de tecido negro com bordado de ouro, o colar de pérolas a envolver-lhe o pescoço, os cabelos chamejando, ao entrar no automóvel.
- Para onde?
A resposta veio com um sorriso curvo e polido de foice:
- Sou bailarina. Siga para o cemitério, vamos à minha boate.
A cidade estendia-se, deslocava-se em todas as direções para o infinito. Subitamente, iluminava-se a alameda dentro de novo espaço. Apenas vidente, Raul não ouvira o estrondo com o qual a meia-noite partira a cidade e provocara um clarão no mundo físico. Dirigia o corcel, um bordel de lata, delirando de desejos. Homem-coisa diluído na massa, a cara de ovo. Freqüentava o centro que fervilhava de gente com cabeças de cachorro a lamber os nus expostos nas bancas de revistas. Refletiam-se em sua mente as notícias que lia e ouvia, filmes aos quais assistia atingindo o êxtase. Gozava com as manchetes: "Drogada e Torturada", "Currada por Cinco na Praça Osório", "Tarado Estupra Menor", "Triângulo de Homossexuais", "A Virgem Violentada", "O Super Macho", "As Fêmeas", "A Dama da Lotação".
Só lia pornografia moderna, literatura erótica. Com a cabeça cheia de imagens sujas, imitava os personagens. Quando leu a reportagem do maloqueiro que estrangulara uma estudante, não viu mal nenhum no crime. O mal atrai o mal e, por isso, caiu nos braços de Nereide. Saía de casa à cata de "chacretes" ou "vendrametes" e não se satisfazia na Vila Parolim, nem no quarto de espelhos do "Quatro Bicos", nem na "Boneca do Iguaçu". Perdera-se na cidade e entrou no infinito da Rua Mateus Leme. Ao passar em frente à igreja, Nereide sumiu momentaneamente do assento, mas reapareceu sorrindo sarcasticamente. Chegou a elevar-se no ar, à altura do Parque São Lourenço.
- É aqui. Chegamos.
- Parece mais um castelo de que uma boate.
A vila (o cemitério) tinha vida noturna, estava em festa, e os vigias de rostos melífluos recepcionaram os amantes, conduzindo-os à boate pela rua principal. As portas abrem-se diretamente para o salão, onde a música era sensual e macabra, desconhecida na Terra. Fantascópios pendiam do teto e sua luz provinha de fogo e sal, embora o luar penetrasse pelos vitrais, refletindo no chão as pétalas das rosáceas em que pisavam. Caras satisfeitas de gente-animal coruscavam nos espelhos. A realidade não se mostrava por inteiro a Raul, que arregalava os olhos sobre Nereide. Ao tomá-la nos braços, sentia-se num mundo de gaze, éter e sonho. Via mostras desse mundo, vislumbrava-o. Encantados um com o outro, longas horas passaram num segundo. Suas almas pareciam as asas da mesma borboleta. Trocavam fantasias libidinosas, entendendo-se pelo olhar, pelo aperto de mão, pelo pulsar do coração.
"Nereide é seu nome, já a conheço há muito tempo, desde esta noite", - pensava, enquanto via as feições de tantas outras passarem naquele rosto adorável. Começou a estranhar o que acontecia, quando notou que os pares eram homens entrelaçados ou de mulheres a se oscularem com sofreguidão. E, então, num beijo da morte, sentiu as garras de Nereide nos lábios, um calafrio, o sangue e o tremor do coma.
Na manhã seguinte, os jornais anunciavam que macumbeiros haviam violado um túmulo no cemitério e espalhado todos os ossos retirados dos caixões. O corpo de um desconhecido, com a cara desfigurada, só foi achado quinze dias depois de assassinado, atirado a um perau da Serra. As matrizes do inferno continuaram gerando cada vez mais. Gente aprendendo o verbo do mal, perdendo o entendimento, deixando de ser pessoa, virando fantasma.
Voluptuosa, medonhamente bela, brilhando em meio às asas de trevas, a Loura Fantasma vigia a Rua Mateus Leme à espera de amantes.

0 Comments:

Post a Comment