quinta-feira, 27 de maio de 2010

"A loira fantasma", por Noel Nascimento (parte 4)

"A loira fantasma" (parte 4)

À tardezinha, duas moças iniciaram cerimônia no cemitério. A de avental e colares matou a dentadas sete galinhas pretas, abriu garrafas de conhaque, pinga e champanha, suja de sangue, bebendo e dançando ao redor da cruz, frente ao préstito, espetou com alfinetes um boneco dentro de um caixão mortuário em miniatura.
A Loura Fantasma toma formas e expõe as faces resplandecentes, após furtar só para si a luz das velas vermelhas e pretas dos despachos de feitiçaria. Há rastros de violência nas ruas e forte odor de tóxicos. Medonhamente bela, assoma com os olhos brilhando, pois a escuridão é a claridade dos mortos, muitos ainda agarrados às costas dos encarnados. Os suicidas, desaparecidos antes do tempo, pagam em dobro a dor da vida.
A lua flui no céu e a Loura Fantasma no infinito da alameda. Tudo começou quando, ao cair da noite, uma fogosa dama da alta sociedade corneava o marido, bordejando de carro em carro. Surpreendida acasalada no assento traseiro, foi três vezes alvejada e morreu com um tiro no meio da testa, o rosto coberto de sangue. Então ressurge a confundir os mundos e, sequiosa da carne, agarra o homem do volante, e toda a cena se repete.
Homem que dirige automóvel a desoras tem de tomar muito cuidado, pode errar o caminho e topá-la na alameda. Taciturno, o poeta Adalto por pouco não foi dançar nas nuvens, quando parou o carro, arrepiando-se ao vê-la sumir debaixo da árvore.
No plantão noturno da farmácia do Ahú, dizia o boticário:
- A Uda se vestia de preto e pintava os cabelos de amarelo. Tinha bordel naquelas imediações, o tempo passa e ela permanece jovem. Se não podia envelhecer, decerto não podia morrer. Não será ela a Loura Fantasma?
Moça direita, Joyce chegou atrasada à Praça Garibaldi, onde trabalha. Não pôde apanhar um táxi no centro porque o motorista pensou que era ela a Loura Fantasma. No Teatro Guaíra, o eletricista Reinaldo fantasiou-se de Loura Fantasma e quase matou de susto o vigia noturno. Agora se encolhe, penando de medo de castigo.
Há muito mistério na Rua Mateus Leme, que segue para o cemitério do Abranches. Um pátio alto e soturno é uma sepultura que se ergue sobre os escombros de um antigo prostíbulo. A dona, que freqüentava o Cassino Ahú, morreu moça, viu seu próprio enterro, não sofreu nenhuma mudança e ainda continua a sair após o movimento do salão.
Na verdade, a Loura Fantasma é Nereide - sabem o que significa? - a que sorri com a minguante na boca, à caça de amantes, ocultando crimes e desaparecendo no bairro. Alimentada pelo ectoplasma das bruxas, é vista em muitos lugares num mesmo instante, impregnando Curitiba.
Movendo-se em quarta dimensão, de medo e de ódio. Emboletada, não come. Não engravida para não perder a cintura. Um belo monstro. Deusa e besta dos homens. Um velho viu-a de chifres na testa, e um coxo ficou encantado: "parece uma Cleópatra Loura".
De dia, ela anda por aí, escondida atrás da face das damas falsas. Gilberto, que também tinha um táxi, ao recolhê-la ficou alucinado ao ver-se dirigindo um féretro e foi parar no Pronto Socorro. Ela aparecia em plena escuridão, mas Guilhobel só a enxergou ao alumiar-lhe o rosto com a chama do fósforo. De medo fez tremer a terra, há pouco saíra de uma sessão de necromancia.

0 Comments:

Post a Comment